quarta-feira, 29 de junho de 2011

Woody Allen: Meio-Dia em Paris, na fila do Louvre

Uma vez perguntaram a Miles Davis sobre os "anos dourados" do jazz, ao que ele retrucou: "Que anos dourados? Nós éramos pobres, desesperados. Um se suicidava, o outro vendia o instrumento para comprar droga. É isso que você chama de anos dourados?" (ou algo parecido, estou citando de cabeça). E isso nos remete a essa nossa mania de nutrirmos uma nostalgia de épocas que não vivemos, pois, no conforto de nossas poltronas, é fácil enxergar apenas o lado romântico de vidas dolorosamente conturbadas, ainda mais quando essas épocas geraram tantas obras de arte excepcionais. Nada mais suculento para um crítico do que um artista genial e trágico: ele pode aliar sua genuína admiração ao gênio a esse prazer recôndito e inconfesso que nos toma ao lermos sobre essas figuras, o mesmo prazer (inconfesso, repito) que temos ao ler sobre a morte de alguma celebridade. Nós adoramos figuras trágicas, talvez porque ela nos façam lembrar que, no final das contas, somos todos humanos. Para citar figuras do esporte, Ayrton Senna virou um ídolo, com direito a monumento público. Emerson Fittipaldi, um ícone que merecia respeito maior, é solenemente ignorado. Seu pecado? Ele continua vivo e feliz. Nós idolatramos Van Gogh e ignoramos o gênio de Cézanne, que afinal foi quem deu início a todos os movimentos do começo do Século XX. Cézanne não se suicidou como Van Gogh, não morreu pobre e alcóolatra como Modigliani (cuja mulher, grávida, se suicidaria logo depois), nem era um marqueteiro de primeira grandeza como Picasso. Era discreto, levou uma vida pacata e morreu aos 67 anos (muito para aquela época). Não importa ele ter sido um gênio e um visionário. Sua vida não teve "graça", e ele foi relegado a um pé de página.



E foi com isso em mente que vi ontem "Meia-Noite em Paris", último filme de Woody Allen. A esta altura, todos já sabem do enredo: roteirista norte-americano vai a Paris com a família da noiva, fica entediado, começa a caminhar à noite e é magicamente transportado para os anos 20, a época que ficou imortalizada no livro "Paris é uma Festa", de Ernest Hemingway, e vem causando comichões em artistas e aspirantes a artistas desde então. No livro, Hemingway fala de sua convivência com os escritores F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Ezra Pound e Gertrude Stein, cuja "Autobiografia de Alice B. Toklas" também nos dá um inspirado panorama daquela geração que havia acabado de sobreviver à Primeira Guerra. Todo mundo estava em Paris, era lá que as coisas aconteciam. Os espanhóis Pablo Picasso e Salvador Dalí flanavam por suas ruas, ao lado dos mestres franceses que criavam movimentos como quem troca de roupa. O modernismo ganhava força, as vanguardas assombravam a todos. O mundo parecia um grande gabinete de curiosidades. Vendo em restrospecto, sentimos até uma certa pena desse entusiasmo - em 1939 o mundo escureceria de vez, e Paris seria invadida pelos alemães e humilhada até 1944. Artistas se suicidariam, seriam mortos ou fugiriam como ratos na calada da noite. Quem tem nostalgia dessa época certamente preferiria pular essa parte.

Ernest Hemingway
Antes de continuar, gostaria de dizer que sou fã de Woody Allen. Já vi quase todos os seus filmes, li seus livros, sei frases suas de cor, que vivo repetindo. Mas o humorista brilhante tem uma outra faceta, que domina a sua vida e vez ou outra emerge em seus filmes: um norte-americano neurastênico que desdenha a atual cultura de seu país (com certa razão) e um poser que venera a cultura europeia com indisfarçável inveja - aquele que emulou Ingmar Bergman em "Interiores" (1978) e agora põe todas as suas cartas na mesa - e essas cartas não têm a menor graça. No filme, Allen contrapõe seu alter ego, o roteirista Gil (Owen Wilson) ao pedante Paul (Michael Sheen), sem perceber que os dois se equivalem. Allen despreza e desdenha a sociedade americana, principalmente a de alta classe, sempre descrita como medíocre e arrogante, mas ela está sempre lá, em seus filmes, numa Nova York edulcorada, os pedantes bem-nascidos a falar de Dostoiévksi como quem fala da trufa branca do Piemonte: um artigo raro e obrigatório a se exibir durante o jantar. Gil ganha uma grana preta como roteirista, tem uma noiva bela e fútil e sonha com o romantismo da Paris dos anos 20. Em suma, Gil é um bobo, e Allen não poderia ter escolhido um ator mais abobalhado para o papel. E o fato de ele pronunciar Rodin como "road ann" só piora as coisas.
E então começa o maior problema do filme: o desfile de mitos que frequentavam os cafés e as festas da Cidade das Luzes. Se conseguir um ator para protagonizar um único personagem nessas cinebiografias já é difícil, o que dirá de vários deles. Corey Stoll tenta dar masculinidade ao seu Hemingway, mas não convence nem a própria mãe. Alison Pill nos faz acreditar que, se encontrássemos Zelda Fitzgerald tentando se suicidar, certamente daríamos um empurrãozinho. E os atores desconhecidos prestam um verdadeiro desserviço a grandes artistas: Buñuel é apenas um bobalhão, além de pouco inteligente; Toulouse-Lautrec é só um anão inexpressivo; Pablo Picasso tem o charme de uma maçaneta e Gertrude Stein é uma matrona ansiosa e tagarela (talvez fosse mesmo). A única exceção é o formidável Adrien Brody, que em cinco minutos salva o filme com sua interpretação do amalucado Salvador Dalí. Aliás, o encontro com os surrealistas, apesar do Buñuel narcoléptico, é a melhor piada do filme. E Brody lembra de algo que a maioria dos atores norte-americanos parece esquecer: que existe uma coisa chamada pronúncia, e outra chamada sotaque, e que essas coisas deveriam fazer parte da construção do personagem - a época dos soldados romanos falando inglês britânico já passou. E o desfile de celebridades dos anos 20 continua, e ficamos nos perguntando por que mesmo essas pessoas tão superficiais e pretensiosas fazem parte do nosso imaginário. A resposta é óbvia - porque foram artistas brilhantes - mas o filme sequer nos deixa entrever isso. E, no final, Allen chega à mesma conclusão que a do início do meu texto: nós sempre estamos idealizando gerações passadas e desdenhando a nossa própria. E romantizamos vidas que foram verdadeiramente dolorosas e trágicas. Hemingway se matou com uma tiro de espingarda em 1961. Sentir nostalgia já é uma bobagem. Sentir nostalgia de uma época que não vivemos é risível.

2 comentários:

  1. Concordo com quase tudo no texto, Ma, apesar de ter assistido quase todos os filmes de Woody Allen, acho apenas alguns deles brilhantes e os outros enfadonhos. Concordo com o que vc disse em relação à interpretação dos atores dos personagens dos anos 20 e ao saudosismo e nostalgia. Mas gostei da interpretação de Owen Wilson, ele está bobo pq acredito que era essa a finalidade, criar um personagem bobo. Ele está muito parecido com os personagens que WA interpretava nos filmes dele antigamente, como "Everybody says I love you", etc. Eu nunca estive em Paris, por isso não posso afirmar se a cidade é vista de uma maneira romantizada, mas de qq forma, a grama do vizinho sempre é mais verde, ninguém nunca está satisfeito com a época, o país, a cidade em que vive.

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  2. Marna, eu não desgosto do Owen Wilson, só o acho bobo, com cara de bobo, sempre fazendo papel de bobo. Isso cai como uma luva em certas comédias, onde ele se sai muito bem. Sem dúvida, neste filme ele imita Woody Allen à perfeição, mas um ator um pouco melhor teria dado mais substância a um personagem tão raso - Adrien Brody talvez, mas aí não teríamos o seu impagável Dalí. Ah, eu adoro "Everybody says I love you" (eu o traduzi na época, pra VHS!)

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