quarta-feira, 15 de junho de 2011

Luiz Zerbini e o Chelpa Ferro

Eu nunca fui acometido pela Síndrome de Stendhal (aquela perturbação mental que se manifesta em algumas pessoas diante de grandes obras de arte e que virou até título de um filme de Dario Argento de 1996), mas os momentos de maior arrebatamento que senti foram diante de pinturas. A arte contemporânea há muito expandiu seus horizontes para além da pintura e da escultura, numa pletora de mídias: fotografia, vídeo, instalações, objetos, livros, performances, land art, obras site specific, instalações sonoras etc. O que a arte ganhou em meios e suportes, com o uso cada vez maior da tecnologia digital, perdeu, a meu ver, em profundidade e consistência. Mas antes que me chamem de reacionário, apresso-me em dizer que acredito na inteligência e no brilhantismo de alguns artistas, independentemente da técnica em que se expressam. Um desses artistas que extrapolam os limites da pintura sempre de forma original é Luiz Zerbini (São Paulo, 1959).

Luiz Zerbini, pintura de 1987

Ainda na década de 80, vi a reprodução do quadro acima e me encantei, sobretudo com o título: "A Tragédia é um Acúmulo de Mal-Entendidos". Anos depois, vi mais obras dele na mostra da Coleção Gilberto Chateaubriand, e pude constatar que ele pintava quadros luminosos, em composições desenfreadas e corajosas, tal qual uma criança espalhando brinquedos pela sala. Mas o arrebatamento de que eu falava só veio, para a minha surpresa, durante uma performance do grupo Chelpa Ferro, do qual Zerbini faz parte, em 2002. O Chelpa Ferro foi criado em 1995, no Rio de Janeiro, por Zerbini, o artista Jorge Teixeira (Barrão) e o editor de imagens Sérgio Mekler. A princípio, a ideia era criar uma banda, mas como nenhum deles sabia tocar nenhum instrumento, criaram performances com sons pré-gravados e percussões inusitadas. O projeto agradou e eles seguiram criando outras peformances, objetos e instalações.

Maverick 74 utilizado na performance "Autobang", 2002

Em 2002, eu fui à abertura da 25a Bienal de São Paulo, na expectativa de ver sua performance "Autobang". No local, havia um Maverick amarelo ano 74, um elevador de carros, baquetas, marretas, martelos, ossos, barras de ferro, caixas de som e microfones. Com horas de atraso, o grupo chega, acrescido de alguns membros. Alguns usam macacões, todos usam óculos de proteção. O público corre para o local, a ansiedade se assemelha à do início de um show de rock. Eu nunca vi nada parecido numa Bienal, evento agitado e esquizofrênico, onde reinam, paradoxalmente, o bocejo e o cansaço, tão distante do que deve ser a fruição de obras de arte, que pede silêncio e calma. Se não há isso, que haja o oposto - que venha o frio metal e a destruição, e o Chelpa Ferro parece disposto a tal. As luzes se apagam, o Maverick é iluminado. Cada membro pega o seu instrumento de destruição e começa a tocar levemente no carro, e os sons das batidas são processados e devolvidos, eletronicamente, criando ecos e distorções. As batidas são cada vez mais fortes, os sons se misturam e se expandem pelo prédio da Bienal. Uma comoção começa a se criar ali dentro. Mais do que música, eles oferecem uma catarse, um espetáculo de violência e beleza. O carro é levemente erguido pelo mecanismo, alguns membros sobem no capô e no teto, seus vidros são estilhaçados. O público urra, no escuro que circunda o "palco" iluminado, tal qual uma turba assistindo a um linchamento. O Maverick, um símbolo quase fálico de potência e velocidade, está semidestruído. A performance vai chegando ao fim. Inesperadamente, um membro da plateia sobe em cima do carro e começa a pular, logo seguido por outras pessoas, e mais outras. A catarse chega ao limite; os membros do Chelpa Ferro, obviamente preocupados com a segurança das pessoas, correm para retirá-las de cima do automóvel. O mítico prédio da Bienal, projetado por Niemeyer, com suas rampas sinuosas e sua aura de instituição federal, jamais fora chacoalhado daquela forma.

 
Sobre essa obra, Zerbini escreveu:

Esse é um trabalho sobre o som
do desejo, da violência, do instinto, do sexo
do risco, do tempo, do medo, da morte
dos detalhes do universo
é um trabalho de macho sobre o amor
meio burro, truculento, desastrado, infantil
profundo, preciso, caro e pretensioso
é um trabalho sobre o trabalho



Um registro em vídeo dessa performance pode ser visto no site do grupo (link ao lado), além de outros trabalhos. As pinturas mais recentes de Zerbini (magníficas) podem ser vistas no site da Galeria Fortes Vilaça.

3 comentários:

  1. Caramba! Caramba! Caramba! Marcelo, de acordo com o seu blog, sua vida pode até ter lá seus defeitinhos, mas tédio, jamais. Amei o texto e me apaixonei pela pintura de 1987 do Zerbini. M-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a!

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  2. Bia, o tédio é a verdadeira morte, não? Não deixe de ver as pinturas novas dele na Camargo Vilaça - ele é um pintor esplêndido.

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  3. Só faltou o nariz vermelho para os que consideram isto arte...

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