quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Ana Sario

Rua dos Pinheiros, óleo e cera sobre tela, 2009

São Paulo é uma cidade feia. Salvo raras exceções, a cidade é um imenso pesadelo arquitetônico, agravado por ruas esburacadas, sujeira nas ruas, poluição, trânsito parado. Só mesmo o olhar de uma artista para enxergar alguma beleza e alguma leveza na composição caótica de prédios medonhos e fios expostos -  como o olhar de Ana Sario.

Esquina, óleo e cera sobre tela, 2009

Ana é paulistana, tem 27 anos e faz parte dessa nova geração de pintores que começou a despontar a partir de 2008. Diz a artista: "Sinto que faço parte de uma cena contemporânea. Isso só veio porque me foi dada a liberdade de escolha, e eu optei pela pintura".

Sem Título, óleo e cera sobre tela, 2008

A princípio fazendo gravuras, Ana sentiu-se limitada usando essa linguagem, e partiu para a pintura. Com uma capacidade de síntese tremenda e um olhar inspirado para buscar composições geométricas interessantes em meio ao caos paulistano, ela nos oferece uma outra cidade, talvez aquela que repouse além da nossa ansiedade diária, da nossa neurose urbana.

Vila Mariana, óleo e cera sobre tela, 2009

As grossas camadas de tinta e os planos geométricos reforçam o caráter quase abstrato dessas composições. Muito já se discutiu sobre o limite entre a figuração e a abstração, e é nesse meio-campo que Ana se encontra, alcançando, ao mesmo tempo, uma visão bastante poética de uma São Paulo reconhecível e composições geométricas onde a escolha das cores e dos planos é rigorosa e inspirada.

La Rambla, óleo e cera sobre tela, 2009

São Paulo é uma cidade feia, mas Ana nos mostra que, se pararmos um pouco, respirarmos e nos acalmarmos, poderemos ver beleza nela. Um espelho, talvez.

Para ver mais trabalhos de Ana Sario (sua produção desde 2007) clique no link na barra ao lado.

domingo, 28 de agosto de 2011

Leminskiana nº 7

Cecily Brown, New Louboutin Pumps, óleo sobre tela, 2005

    ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
    aqueles que deixaram
que a mágoa nova
    virasse a chaga antiga

    ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
    e que a pedra só não voa
porque não quer
    não porque não tem asa




Poema de Paulo Leminski, publicado no livro "Distraídos Venceremos" (Ed. Brasiliense, 4ª edição, 1991)

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Eric Fischl

Scenes from Late Paradise: The Drink, óleo sobre tela, 190x243cm, 2006

No fim da década de 70 surgiu na Alemanha um movimento que procurava resgatar a pintura como forma de expressão, após décadas de domínio absoluto das artes minimalista e conceitual. Ele levou o nome de neo-expressionismo e fez com que a pintura reemergisse no mercado internacional em meados dos anos 80. Um artista que foi fortemente marcado por esse movimento foi Eric Fischl, um dos maiores pintores norte-americanos vivos.

Sleepwalker, óleo sobre tela, 175x266cm, 1979

Fischl nasceu em 1948, na cidade de Nova York, e cresceu nos subúrbios de Long Island. Segundo ele próprio, vivia num meio de classe média alta onde imperavam famílias disfuncionais, com sérios problemas de alcoolismo e muitos tabus sexuais.

A Visit to / A Visit from the Island (díptico), óleo sobre tela, 213x426, 1983
The Travel of Romance: Scene III, óleo sobre tela, 182x137cm, 1994

Após uma adolescência rebelde, agravada por problemas com o pai autoritário e violento, Fischl começou a fazer cursos de arte, onde finalmente encontrou algo que, segundo ele, o mantinha concentrado e aplacava a sua solidão.

The Bed, The Chair, Changing, óleo sobre tela, 248x261cm, 2000

Após morar em algumas cidades e ter vários subempregos - chegou a trabalhar como guarda no Museu de Arte Contemporânea de Chicago - Fischl voltou a Nova York, onde fez sua primeira exposição na Edward Thorp Gallery, em 1979. Alcançou a fama na década de 80 e hoje é um dos pintores vivos mais caros do mundo.

Krefeld Project: Sun Room Scene 1, óleo sobre tela, 198x304cm, 2002


Simon and Anh, óleo sobre tela, 182x266cm, 2003

Sua pintura não poderia retratar outra coisa senão aquela mesma classe média alta da sua adolescência. Suas imagens são fortes, repletas de tensão sexual, por vezes cruéis. Exímio pintor, Fischl retratou muitos amigos e famílias inteiras, além de personalidades de seu convívio, como os atores Steve Martin e "Willy" Dafoe. Sobre a pintura como meio, o artista diz: "Não há forma de arte mais elevada, mais difícil e mais repleta de história do que a pintura. Não há meio capaz de expressar mais, e com tamanha variedade, do que a pintura fez no passado e continua fazendo".

Para ver mais obras de Eric Fischl (inclusive desenhos, colagens, gravuras e esculturas) clique no link na barra ao lado.
Clique abaixo para ver Eric Fischl comentando um de seus quadros e sua técnica (sem legendas):

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Imagens e Visões de Fernando Rabelo

Fernando Rabelo, Mulher na Janela em Montmarte, Paris, 2005

Hoje gostaria de indicar um blog fabuloso sobre fotografia: o Images & Visions, do fotógrafo e editor brasileiro Fernando Rabelo - autor da belíssima foto acima, parte de sua série "Imagens de um Flâneur Brasileiro em Paris", cuja exposição percorreu várias cidades brasileiras em 2009.

Pierre Verger, Carnaval de Salvador, década de 1950
Maurício Lima, da série "Afeganistão Apocalipse", 2010

Fernando, além de fotógrafo brilhante, é um grande conhecedor da História da Fotografia, e desde 2007 publica diariamente fotos importantes e históricas em seu blog, sempre com informações interessantes, como as da foto abaixo, de autoria de Paul Schmulbach. Nela, vemos Marlon Brando sendo perseguido pelo fotógrafo Ron Galella, que usa um capacete de futebol americano - porque o ator o esmurrara tempos antes, deixando-com cinco dentes quebrados.

Paul Schmulbach, Nova York, 1974

Fernando nasceu em Belo Horizonte, em 1962. Durante a infância, morou no Chile e na França, durante o exílio do pai. Em Paris, fez seu primeiro curso de fotografia. Aos dezesseis anos, voltou ao Brasil, e em sua carreira trabalhou nos principais jornais, como Folha de S. Paulo e O Globo. Durante treze anos, trabalhou como fotógrafo do Jornal do Brasil, e depois como Editor de Fotografia. É autor ainda da exposição "Foco na MPB", com imagens realizadas durante toda a década de 90, e do livro "Tributo à Lagoa", que teve seis edições esgotadas.

Steve McCurry, deserto de Rajasthan, Índia, 1984

Richard Avedon, Nastassja Kinski e Serpente, 1981

Percorrendo o blog de Fernando, temos uma verdadeira aula sobre fotografia em suas principais vertentes - a jornalística e a artística - com seus principais autores, flagras de momentos históricos, registros de tragédias, perfis de políticos e retratos fabulosos, como o de Richard Avedon acima.

Werner Bischof, fotógrafos e cinegrafistas na Guerra da Coreia, 1952

O site também traz uma lista de Filmes sobre Fotógrafos, que me inspirou a fazer a minha lisa de Filmes sobre Pintores aqui no meu blog. Há três meses eu tenho o meu blog, e hoje sei que é um trabalho enorme e sem remuneração, que fazemos muitas vezes no nosso único horário livre, ou nas madrugadas. Há quatro anos Fernando Rabelo publica diariamente, sempre preocupado em passar informações corretas e informar o público. É um trabalho feito por amor à Fotografia, com total desprendimento, um verdadeiro presente para todos nós.

O link para o Images & Visions está na barra à direita da página.

domingo, 21 de agosto de 2011

Alyssa Monks

Weight, óleo sobre tela, 106x142cm, 2007

Alyssa Monks nasceu em Ridgewood, New Jersey, em 1977, e começou a fazer pinturas a óleo ainda criança. Após estudar no Instituto Lorenzo de'Medici em Florença, Alyssa formou-se em Arte Figurativa pela New York Academy of Art em 2001.

Focus, óleo sobre tela, 91x121cm, 2006

Vapor, óleo sobre tela, 152x101cm, 2008

Após completar residência artística no Fullerton College, em 2006, ela lecionou pintura na New York Academy of Art, na Montclair State University e também na Lyme Academy College of Fine Arts.

Smirk, óleo sobre tela, 121x162cm, 2009

A artista busca o realismo com suas obras, quase sempre pintando personagens em contato com a água, mas suas composições também flertam com o abstracionismo ao aplicar distorções e "filtros": o vapor da água, uma cortina de plástico, um vidro jateado.

Liquid, óleo sobre tela, 106x142cm, 2006
Squid, óleo sobre tela, 121x81cm, 2011

Diz Alyssa: "Quando eu comecei a pintar o corpo humano, eu fiquei obcecada com ele e quis atingir o máximo de realismo. Eu busquei o realismo até que ele começou a se desfazer e a se descontruir. O realismo e a abstração têm uma relação simbólica - eles precisam um do outro para existir, e por fim tornam-se a mesma coisa".

Alyssa Monks em seu ateliê, em Nova York

No site da artista (link ao lado), além das obras produzidas por ela desde 2006, há uma seção chamada "detalhes", onde é possível ver com bastante proximidade partes de alguns de seus quadros. Ao vermos as pinceladas tão de perto, compreendemos melhor essa relação entre o abstrato e o figurativo, além de nos deliciarmos com a técnica fabulosa dessa jovem artista.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Leminskiana nº 6

Jodie Foster em "Taxi Driver" (Martin Scorsese, 1976)
      

     podem ficar com a realidade
esse baixo astral
    em que tudo entra pelo cano

    eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano





Poema de Paulo Leminski, publicado no livro "Distraídos Venceremos" (Ed. Brasiliense, 4ª edição, 1991)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Pakayla Biehn

Sem Título, óleo e acrílica sobre tela, 86x50cm

Numa semana especialmente corrida, com muitos trabalhos de tradução, infelizmente me vejo sem tempo de escrever um post maior. Mas, tentando manter minha meta de uma postagem a cada dois dias, apresento algumas pinturas da jovem Pakayla Biehn.

Sem Título, óleo e acrílica sobre tela

Ten Thousand Times, óleo e acrílica sobre tela, 71x90cm

Nascida nos Estados Unidos, em 1986, Pakayla faz uma pintura hiper-realista onde apresenta imagens de dupla exposição fotográfica, com resultados muito interessantes.

Never Thought of You as My Mountain Top, óleo e acrílica sobre tela, 60x60cm

Sem Título, óleo e acrílica sobre tela, 66x45cm

A artista nasceu com estrabismo, o que também pode causar esse efeito de imagem dupla. De qualquer forma, ela produz imagens poéticas e bucólicas, em pinturas onde mistura tintas óleo e acrilica.

Sem Título, óleo e acrílica sobre tela

Para conhecer mais trabalhos de Pakayla, que também faz desenhos e trabalhos em outros suportes, clique no link ao lado.

domingo, 14 de agosto de 2011

Leminskiana nº 5

Gerhard Richter, Clouds (Grey), óleo sobre tela, 150x200cm, 1969


    podia passar
a vida inteira assim
    olhando a lua
a boca cheia de luz
    e na cabeça nem sombra
da palavra glória




Poema de Paulo Leminski, publicado no livro "La Vie en Close" (Brasiliense, 2ª edição, 1991)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma palavra sobre o Surrealismo

André Breton, em foto de Man Ray (c.1930)

Outro dia me ocorreu que vez ou outra me refiro ao surrealismo no blog, ao falar do trabalho de algum pintor contemporâneo. Não que algum seja surrealista de fato ou por escolha, mas o conceito do "automatismo psíquico" defendido por André Breton é forte demais para ser deixado de lado. Alguns movimentos artísticos do final do século XIX e começo do século XX se limitaram às artes plásticas, como o impressionismo, o pós-impressionismo e o cubismo; outros, como o dadaísmo, o minimalismo e o futurismo, abarcaram outras áreas, como a literatura, o teatro e a arquitetura. É desta natureza o surrealismo, que começou, na verdade, como um movimento filosóficoliterário. O que me ocorreu foi que, a despeito da importância e do alcance de todos os ismos vanguardistas do período, hoje eles seguem como verbetes num dicionário, sem eco no mundo atual ou na arte contemporânea - a não ser no fato de que ela é tataraneta do dadaísmo via a arte conceitual de Marcel Duchamp. Ou seja, ninguém mais pinta como os impressionistas ou faz poesia como os concretistas ou enxerga o mundo de forma cubista - a não ser que você esteja extremamente bêbado. Mas o surrealismo, de forma única, contribuiu com pelo menos um adjetivo para o nosso léxico e um conceito que se cristalizou - o derivado do seu próprio nome. Assim como a Psicanálise renovou o nosso vocabulário e, com isso, mudou a nossa forma de enxergar o Homem, hoje nos parece natural dizer, diante de algo absurdo ou que pertence ao campo do sonho e da imaginação: "Isso é surreal".


A palavra foi criada em 1917 pelo poeta francês Guillaume Apollinaire, que, no prefácio de sua peça "As Mamas de Tirésias", cunhou o termo "sur-réaliste" para descrever uma forma de expressão que ultrapassasse o realismo literário. O escritor e poeta André Breton (1896-1966), apesar de desancar Apollinaire em seu "Manifesto do Surrealismo" de 1924, adotou o termo para definir uma nova corrente de pensamento que ele viria a desenvolver e defender com unhas e dentes. Breton, que estudara Medicina e fora insuflado pelas teorias psicanalíticas de Freud - principalmente a livre associação e a interpretação dos sonhos - estava ressentido com o excessivo racionalismo europeu e com o naturalismo embotador da literatura da época (no mesmo Manifesto, ele transcreve uma passagem de "Crime e Castigo" de Dostoiévski, em que o autor russo descreve um aposento nos mínimos detalhes, para logo concluir: "perdeu o seu tempo - pois eu não entro no seu quarto"). A princípio aliado à anti-arte anarquista do dadaísmo de Zurique (de onde cooptaria Tristan Tzara, Max Ernst e Hans Arp), surgido junto com a Primeira Guerra Mundial, Breton logo encontrou sua turma em Paris, principalmente os escritores Louis Aragon e Phillipe Soupault, com quem publica o jornal Littérature e começa os primeiros experimentos com a "escrita automática" - que geraria o livro "Os Campos Magnéticos", de Breton e Soupault, em 1920. O que ele desejava, ferozmente, era promover uma libertação dos valores burgueses e uma valorização da imaginação e dos instintos: "Não é o medo da loucura que vai nos obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação. (...) Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade".

O grupo surrealista em 1930. Da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Man Ray, Salvador Dalí, Hans Arp, Paul Éluard, Yves Tanguy, Max Ernst, André Breton, René Crevel

Escreveu Breton no Manifesto de 1924: "Ainda vivemos sob o império da lógica (...) Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud."

Max Ernst, Chimère, óleo sobre tela, 114x146cm, 1928

Ao lançar oficialmente a base de seu movimento, com direito ao famoso verbete ("SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral"), Breton já havia atraído um grupo numeroso de escritores e artistas plásticos que se identificavam com os ideais surrealistas. Entre eles, Paul Éluard, René Crevel, André Masson, Salvador Dalí, Joan Miró, Man Ray, Jean Arp, Yves Tanguy, Jacques Prévert, Giorgio de Chirico, Antonin Artaud, Max Morise e Gala Éluard (que depois se tornaria Gala Dalí). O dadaísta Duchamp esteve envolvido com o grupo, mas jamais aderiu de fato ao surrealismo.

Max Ernst, O Encontro dos Amigos, 1922. Da esquerda para a direita, sentados: René Crevel, Max Ernst, Dostoiévski, Théodore Fraenkel, Jean Paulhan, Benjamin Péret, Johannes Baargeld, Robert Desnos. Da esquerda para a direita, de pé: Phillipe Soupault, Jean Arp, Max Morise, Rafael Sanzio, Paul Éluard, Louis Aragon, André Breton, Giorgio de Chirico, Gala

O problema é que, para Breton, o surrealismo era mais do que um movimento artístico, era uma revolução que mudaria a sociedade e libertaria as pessoas de um racionalismo falso e burguês, para que pudessem, enfim, viver a verdadeira essência do espírito humano. Em 1924, ele e seu grupo fundam o Bureau de Pesquisas Surrealistas e lançam o jornal La Révolution Surréaliste, que duraria até 1929. Ainda em seu Manifesto: "A atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica (...) presta-se especialmente à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer até que as imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito. Aos poucos o espírito se convence da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo a lhes prestar sugestão, logo ele percebe que lisonjeiam a sua razão, e aumentam, outrossim, o seu conhecimento. Ele toma conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus desejos, onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que apenas lhe dão tempo para soprar os dedos queimados. É mais bela das noites, a noite dos fulgores; perto dela, o dia é a noite".

Salvador Dalí, em foto de Jean Dieuzaide (Espanha, 1953)

Em minha modestíssima opinião, apesar dos experimentos interessantes com a escrita automática, o surrealismo só gerou pinturas ruins. No afã de dar vazão às imagens do inconsciente, os pintores surrealistas acabaram por criar um repertório previsível e maneirista, que chegou ao ápice com Salvador Dalí, um artista desigual e um grande promovedor de si próprio (Breton, mais tarde, a seu respeito, criaria o anagrama "Avida Dollars" a partir de seu nome). Vale como personalidade histórica e como louco-mor, mas suas pinturas são medíocres. Pessoalmente, só gosto de alguns trabalhos de Max Ernst e René Magritte. Para mim, as ideias e os processos surrealistas só foram utilizadas de forma completa e brilhante por um gênio, curiosamente um cineasta: Luis Buñuel. Sobre ele escreverei mais tarde. Apesar do fracasso do ideal surrealista de André Breton, e da debandada de seus defensores e de acusações mútuas nos anos seguintes, é tocante conhecer a história desse grupo de artistas, guiados por um visionário que, apesar de considerado autoritário por alguns, ousou, pelo menos durante um tempo, libertar seu espírito e seu intelecto de toda e qualquer amarra imposta pela nossa civilização hipócrita. Seu legado continua sempre que, espantados ou atraídos por algo que nos foge ao conhecimento, dizemos: "Isso é surreal".

Clique aqui para baixar o Manifesto do Surrealismo de André Breton: Manifesto do Surrealismo
Clique abaixo para assistir a "Um Cão Andaluz", dirigido por Luis Buñuel, com roteiro de Buñuel e Salvador Dalí:


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Renata De Bonis

War for Territory, óleo e cera sobre tela, 135x165cm, 2010

Uma das maiores dificuldades para um artista plástico, principalmente um pintor, é encontrar um estilo próprio, uma linguagem que o defina e o diferencie - contanto que eles lhe sejam naturais e não uma imposição de fora para dentro. Muitas vezes, leva-se anos para que esse estilo e essa linguagem se desenvolvam e se concretizem numa obra coesa; outras vezes, ela se cristaliza muito cedo e já mostra sinais de maturidade, como é o caso da pintora Renata De Bonis.

Heavy Soul, óleo e cera sobre tela, 165x135, 2010

Nascida em São Paulo, em 1984, Renata fez parte de um grupo de estudantes da FAAP (entre eles Ana Elisa Egreja, sobre quem já escrevi aqui) que uniram forças para abrir novos caminhos para a pintura, num mercado absolutamente dominado por outros suportes, técnicas e mídias. Tal estratégia deu certo: eles encontraram espaços expositivos e ganharam a imprensa - segundo eles próprios, até com certo exagero. Passado o frenesi midiático, Renata provou ter talento e possuir uma obra já amadurecida e pronta para novos direcionamentos.

Beyond Here, díptico, óleo e cera sobre tela, 170x200cm, 2010

De suas aulas com o pintor Paulo Pasta, na FAAP, Renata adquiriu a técnica de utilizar tinta óleo e cera, o que acabou definindo o seu estilo, esmaecido e monocromático, que lhe confere um caráter minimalista e fortalece o tema, extremamente narrativo. Renata é apaixonada por cinema, e suas pinturas fazem referências diretas e indiretas a seus cineastas prediletos - como a do início desta página, retirada de uma cena de "Intriga Internacional", filme de 1959 de Alfred Hitchcock. Em sua infância, viajava constantemente com o pai para os Estados Unidos, onde ficava a sede da empresa em que ele trabalhava. Daí vem o fascínio com a "América Profunda" tão visitada por Bob Dylan - de uma de suas músicas ela retirou a frase da pintura acima: "Além daqui não há nada além das montanhas do passado".

Old Country Song, óleo e cera sobre tela, 100x150cm, 2010

Outra característica de Renata é o fato de ela pintar paisagens, algo muito distante da produção da maioria dos pintores contemporâneos - e ela ter encontrado um estilo próprio e tão eloquente num gênero tão difícil é mais uma prova de seu talento. E tal característica acabou lhe rendendo um convite inestimável: no início de 2008, ela foi convidada para uma residência artística no Joshua Tree Highland House, no deserto de Joshua Tree, na Califórnia, onde ficou isolada durante um mês, o que resultou nas pinturas da série Harvest Memories, exibida na Galeria Laura Marsiaj, em 2010.

Noah's Washing Machines, óleo e cera sobre tela, 90x90cm, 2009

Renata De Bonis vê os Estados Unidos com o olhar de um estrangeiro - o mesmo do Wim Wenders de "Paris, Texas" e do Antonioni de "Zabriskie Point", este último filmado num deserto bem próximo a onde ela ficou. Os amplos horizontes, a aridez, a vegetação rasteira, a terra e o céu aberto encontraram eco na paleta de Renata, numa feliz conjunção.

Yucca Valley, óleo e cera sobre tela, 90x110cm, 2010
 
Diz a artista: "O calor beirando o insuportável, a solidão e o isolamento, os animais selvagens que me cercavam, a luz e o horizonte únicos do deserto resultaram em pinturas que espelham a minha experência nesse ambiente aparentemente inóspito". Renata me diz que esse olhar estrangeiro a encanta, e que viajar faz parte de seu trabalho. Viagens futuras certamente influenciarão a sua pintura, e novas paisagens hão de se imiscuir em sua paleta e em suas composições, ao mesmo tempo em elas próprias serão modificadas através da visão afetuosa e poética dessa pintora singular.

Renata De Bonis


Para ver mais obras e saber dos últimos projetos da artista, clique no link ao lado.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Pintores Chineses Contemporâneos

Zhang Xiaogang, Bloodline: The Big Family 2, óleo sobre tela, 180x230cm, 1995

Uma das sensações da 22ª Bienal de São Paulo, em 1994, foi Zhang Xiaogang (Kunming, 1958) sinalizando que havia uma arte vigorosa sendo produzida na China desde a década anterior, principalmente a pintura, o que se confirmou nos anos seguintes, com diversas exposições pelo Ocidente de artistas de sua geração. E a "febre" chinesa ainda não arrefeceu: em janeiro a março deste ano, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) de São Paulo apresentou a exposição "Comunidade de Gostos: Arte Contemporânea Chinesa desde 2000".

Zhang Xiaogang, Bloodline: The Big Family 3, óleo sobre tela, 180x230cm, 1995

A série "Bloodline" de Xiaogang, feita durante a década de 90, mostra famílias chinesas em poses rígidas, em retratos de estúdio "oficiais", vestindo os ternos e túnicas que se tornariam o uniforme chinês durante a Revolução Cultural da Era Mao Tse-tung (1949-1976).

Wei Dong, Flag, acrílica sobre tela, 61x168cm, 2006

A herança maoísta está gravada no trabalho nos novos artistas chineses como uma cicatriz. Mesmo aqueles que eram criança durante os últimos momentos do regime foram profundamente influenciados por ele, como o brilhante pintor Wei Dong, nascido em 1968 em Chifeng, na Mongólia. Aos dois anos, sua família se mudou para Wuhan, na China, onde mais tarde ele estudaria Arte em Beijing. Seus quadros mostram cenas da China maoísta em composições clássicas ocidentais, repletas de símbolos. Uma curiosidade é sua preferência pela tinta acrílica, menos maleável, à tinta óleo.

Wei Dong, Lamb, acrílica sobre tela, 137x162cm, 2009


Uma nova geração, porém, optou por registrar cenas mais banais da China pós abertura econômica, como Liu Xiaodong (Liaoning, 1963), que se alia à chamada "Sexta Geração" do cinema chinês atual, que pratica o que já foi intitulado de "realismo cínico".

Liu Xiaodong, Bathers in the Sun, óleo sobre tela, s/t, 1990

Tantos nos filmes dessa geração de cineastas quanto nos quadros de Liu Xiaodong não há resquícios da austeridade da era comunista, mas pessoas comuns, em cenas banais, muitas vezes em paisagens que nada enaltecem o país - como no quadro abaixo, uma crítica à construção da barragem da hidrelétrica de Três Gargantas (a maior do mundo), que deslocou inúmeras comunidades à margem do Rio Yang-tse.

Liu Xiaodong, Three Gorges: Newly Displaced Population, óleo sobre tela, 300x1000cm, 2004

He Sen nasceu na província de Yunnan, em 1968, e possui uma grande série de pinturas onde se vê garotas de lingerie, contra um fundo cinza, fumando ou bebendo - talvez uma crítica ao período de transição da sociedade chinesa, agora perdida e abanonada ao consumismo e aos vícios do capitalismo?

He Sen, Pretty Dudu and Pretty Toy, óleo sobre tela, 199x248, 2008

He Sen, What Do You Want To Talk, óleo sobre tela 199x248cm, 2008


Um dos artistas chineses mais curiosos e famosos no momento é Yue Minjun (Heilongjiang, 1962). Suas pinturas, gravuras e esculturas mostram uma figura apenas: um clone do artista de boca escancarada, uma fileira interminável de dentes, os olhos fechados e o rosto ruborizado numa gargalhada cujo motivo já rendeu diversas teorias - jamais confirmadas pelo artista.

Yue Minjun, s/título, óleo sobre tela, 220x200cm, 2005

Seria uma gargalhada de vitória, após a abertura exigida à força nos protestos da Praça da Paz Celestial, em 1989? Seria uma risada cínica diante de um mundo globalizado e cada vez mais dependente da economia chinesa? Ou estaria ele, dolorosamente, rindo de si próprio? O teórico Li Xianting a descreve como "uma resposta autoirônica ao vácuo espiritual e à insensatez da China dos dias de hoje".

Yue Minjun, Between Men and Animal, óleo sobre tela, 280x400cm, 2005


Fang Lijun nasceu em 1963, na província de Hebei.  Também egresso da geração do "realismo cínico", seu trabalho possui parentesco com o de Yue Minjun, com figuras por vezes cômicas, por vezes grotescas, num sentimento de não-adequação aos novos tempos.

Fang Lijun, Series 1 #3, óleo sobre tela, s/t, 1991

Assim como Minjun, Lijun pratica uma pintura realista bastante rigorosa, mas contraposta a elementos pop e uma estética descaradamente kitsch.

Fang Lijun, 1993.1, acrílica sobre tela, 180x230cm, 1993

Eu me limitei a seis pintores (além de Ling Jian, publicado no post de 4 de agosto), mas há uma série de artistas chineses fazendo trabalhos brilhantes em fotografia, vídeo e outros suportes. Dividos entre um passado de opressão, que deixou cicatrizes na alma do país e moldou o seu caráter, e um futuro promissor porém incerto, esses artistas produzem uma obra instigante e cheia de significados, ao mesmo tempo mantendo o rigor técnico e uma riqueza visual que não são de agora, mas que pertencem à China milenar.