terça-feira, 7 de junho de 2011

Lady Gaga, Matthew Barney e o ciclo "Cremaster"

No começo de 2010, um amigo me mostrou o clipe "Bad Romance", de Lady Gaga. Até então eu nunca tinha prestado atenção nela, mas ele me assegurou: "Ela é a próxima Madonna". Achei a música legal, mas a primeira coisa que me ocorreu vendo o vídeo foi que, visualmente, ela havia sugado Matthew Barney até a última gota. Os figurinos, a ambientação, a maquiagem, as cores, as situações - tudo remetia ao ciclo de cinco filmes "Cremaster" do artista contemporâneo norte-americano, obviamente de forma diluída e empacotada para caber num clipe de cinco minutos.

Matthew Barney em "Cremaster 3"
Gaga, sendo novaiorquina e atenta a tudo que acontece à sua volta, certamente deve ter assistido aos filmes, que foram produzidos entre 1994 e 2002 e culminaram numa grande exibição no Guggenheim. Mais uma pitada de Madonna, outra de David LaChapelle - além da necessária obsessão pelo sucesso - fizeram Lady Gaga ser quem ela é hoje. Outro aspecto em comum com Barney é a sexualidade fria e explorada visualmente de forma estilizada e clínica: ele vê a sexualidade como um processo biológico e histórico ("cremaster" é um músculo que, no homem, suspende os testículos, e na mulher, recobre o ligamento redondo do útero - a partir daí Barney desenvolve inúmeras analogias e imagens que remetem aos processos de desenvolvimento e transformação do Homem); Gaga diz ter escolhido a fama à vida sexual e amorosa, ao mesmo tempo em que aparece, quase sempre seminua, numa simulação de sexualidade - a escritora Camille Paglia, que adora Madonna de forma lúbrica e não perde uma polêmica, acusou Gaga de ser "uma marionete magricela, ou um andróide plastificado" que "matou o sexo", e se pergunta: "como uma figura tão calculada e artificial, tão clínica e estranhamenrte asséptica, tão desprovida de erotismo genuíno tornou-se um ícone de sua geração?"

Aimee Mullins em "Cremaster 3"
Enquanto Gaga confessadamente almeja a fama a qualquer custo, Barney é um cara tímido e avesso aos holofotes, apesar de ter se casado com a cantora Björk, com quem tem uma filha, Isadora. De sua adolescência de esportista (ele praticava luta-livre e futebol americano) em Boise, Idaho, Barney herdou um corpo atlético e a disposição para stunts perigosos. Após trabalhar como modelo e se mudar para New Haven, Connecticut, Barney começou a estudar Arte em Yale, logo chamando atenção por sua originalidade. Seu trabalho de graduação foi um vídeo, "Field Dressing", que já continha as sementes que culminariam no ciclo "Cremaster". Em 1989, ele se muda para Nova York, chama atenção da poderosa art dealer Barbara Gladstone e inicia a produção dos filmes. O primeiro a ser lançado foi o "Cremaster 4" (eles foram feitos fora da ordem cronológica), produzido com "apenas" 200 mil dólares, e obviamente o menos sofisticado visualmente, embora já repleto de ideias originais e trazendo a famosa imagem do sátiro Loughton Candidate.

"Cremaster 4"

Eu tive a oportunidade de ver os cinco filmes em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, em 2004. Confesso que nunca passei tantas horas sentado numa sala de exibição, mas saí confiante de ter visto uma das obras mais arrebatadoras da modorrenta arte contemporânea, onde vicejam artistas que nos oferecem um jantarzinho requentado de conceitos tresloucados e uma autorreferência pouco interessante, com muito pouca visualidade. Barney certamente possui um discurso complexo (Björk, que participou do filme "Drawing Restraint 9", honestamente afirmou não ter entendido completamente o conceito do filme do marido), mas nos oferece um banquete audiovisual. Porém, quem espera uma narrativa clara e linear estranhará os longos planos-sequência onde ações são repetidas ad infinitum, o encadeamento de cenas aparentemente sem ligação entre si e os personagens mudos e estranhos.

Ursula Andrews em "Cremaster 5"
De 1994 a 2004, Barney seguiu produzindo os filmes do ciclo, que foram se tornando verdadeiras superproduções, conforme ele dispunha de orçamentos maiores, culminando no espetacular "Cremaster 3", um épico de mais de três horas de duração - os demais têm cerca de uma hora, totalizando cerca de sete horas. Barney consegue alinhavar em seus conceitos seres mitológicos, gigantes, ninfas, o estádio de futebol em Idaho onde ele jogava, loiras platinadas, balões da Goodyear, o escritor Norman Mailer interpretando Houdini (o assassino Gary Gilmore, cuja vida é contada no livro "A Canção do Carrasco", de Mailer, é interpretado por Barney em um dos filmes), Ursula Andrews interpretando uma solitária rainha, o artista Richard Serra como o arquiteto do Chrysler Building, corridas de cavalo, óperas e por aí vai, numa cornucópia de símbolos misteriosos e situações exuberantes. Seus detratores dizem que muito pouco faz sentido e que o próprio Barney se complica ao explicar seus filmes, mas não esqueçamos que o grande Buñuel muitas vezes dizia filmar coisa que havia sonhado, sem se importar com o significado. Matthew Barney não é um artista surrealista, ele não cria suas obras valendo-se do "automatismo psíquico" preconizado por André Breton no Manifesto de 1924; ao contrário, ele é um artista cerebral que gosta de ruminar seus conceitos e planejar longamente suas obras. Não obstante, o resultado final é muito similar: uma deambulação onírica que nos deixa extasiados.

"Cremaster 5"

Em 2004, Barney veio ao Brasil produzir "De Lama Lâmina", rodado em Salvador durante o carnaval, e segue filmando a séria "Drawing Restraint". Mas se você estiver se perguntando onde pode ver esses filmes, sorry, eles jamais serão lançados comercialmente, e por um aspecto técnico da arte contemporânea: trabalhos audiovisuais são tratados como a obra em si, e suas cópias são limitadas e caríssimas (no caso dele). É como uma gravura: existe uma matriz, e um número x de cópias é impresso. Quanto menos cópias, mais caras elas são. Mas você pode ter um aperitivo no site www.cremaster.net, ou comprar o livro "The Cremaster Cycle" (tem na Amazon por 140 dólares), ou esperar para ver em algum museu, nas raras exibições ao redor do mundo...


Veja o trailer:

5 comentários:

  1. Muito prazer, Matthew Barney, muito obrigada, Marcelo Nunes. Ai, ai, vou ficar maluca! Do Facebook para o blog e agora do blog para os site do cremaster e o trabalho...só esperando!

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  2. É, eu também tenho que me policiar para não atrasar as minhas traduções...

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  3. adoro esse cara, louco e cerebral....sexual e assexual....os opostos unidos....como eu....

    pena que comprei um dvd não lá muito confiável de alguém dos 5 filmes cremmaster dele e nem dá para ver bem....

    beuys enlouquecido, sem utopia....lindo demais.....

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  4. Obrigado,, Bruno e Simone! Vocês combinaram de ler o post juntos hoje? rsrs

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