quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sobre Thoreau e "Na Natureza Selvagem"



Semana passada, traduzi um episódio do programa "Sem Reservas", do chef norte-americano Anthony Bourdain, para o canal Discovery. Tony, como é chamado pelos amigos, viaja pelo mundo experimentando a culinária local, e nesse programa viajaria aos cafundós do Maine, terra de seu cinegrafista Zach. Antes da viagem, ele pergunta a Zach: "Então, o que nós vamos ver no Maine?". Zach dá uma risadinha e diz: "Você já leu Thoreau?", ao que Tony responde: "Não me venha com esse papo de voltar à natureza... Mas tudo bem, se você me garantir que não haverá sodomia não-consensual". O comentário ilustra bem o que pessoas "civilizadas" (como o novaiorquino de origem francesa Tony) pensam a respeito do interior dos EUA, principalmente daqueles estados de baixíssimo índice populacional e intocados pelo desenvolvimento industrial: caipiras sodomitas e potencialmente homicidas, por pura má índole e/ou consaguinidade, conforme a imagem indelével do clássico "Amargo Pesadelo" ("Deliverance", filme de 1972 de John Boorman), onde Jon Voight, Burt Reynolds e mais dois amigos da cidade resolvem descer um rio de canoa e se dão muito mal, não sem antes participarem do famosíssimo "duelo de banjos". Outra coisa que vem à mente de todos sobre os cafundós dos EUA e a tal vida selvagem é bem mais nobre e inspiradora: o pensamento de Henry David Thoreau (1817-1862).

Na verdade, voltei a pensar em Thoreau desde que vi o filme "Na Natureza Selvagem", de Sean Penn. Filme belíssimo, com o excelente Emile Hirsch no papel de Christopher Johnson McCandless (quem o viu em "Alpha Dog" e "Milk" sabe como ele é versátil, ao contrário de certos atores famosíssimos) e boa trilha de Eddie Vedder (se bem que alguém sugeriu que Woody Guthrie teria sido melhor). Trata-se de uma história real, contada no livro "Into the Wild", do jornalista e escritor Jon Krakauer. McCandless, após se formar, em 1990, colocou uma mochila nas costas e partiu numa viagem de dois anos, passando por alguns estados até chegar ao Alasca (péssima ideia) onde acabaria morrendo de inanição. O que o movia, mais do que aventura, era um ideal de volta à natureza e autoconhecimento, fortemente alimentado pela leitura de Jack London, Tolstói, Jack Kerouac e, mais marcadamente, Ralph Waldo Emerson e Thoreau.



Mas quem foi Thoreau? Antes de mais nada, um homem acima dos seus pares e à frente de seu tempo. Nasceu e viveu na cidadezinha de Concord, Massachusetts, formou-se professor, montou uma escola com o irmão mas acabou mesmo trabalhando na fábrica de lápis do pai. Sempre foi independente, visionário e rebelde. Por sorte, era vizinho do escritor, filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson, criador do transcedentalismo, que já pregava mais espiritualismo e menos materialismo, mais intuição e menos racionalismo. Emerson era mais velho e virou tutor de Thoreau, a ponto de chamá-lo para viver em sua casa. Após um tempo, Emerson lhe deu permissão para construir um casebre num terreno seu, às margens do Lago Walden. A princípio, ele foi para o meio do mato com dois propósitos: um, escrever um livro sobre uma memorável viagem de barco que havia feito anos antes com o seu finado irmão John; outro era conduzir um curioso "experimento econômico" em que ele pretendia inverter o hábito ianque de trabalhar seis dias e folgar um: ele queria trabalhar um dia, para seu sustento, e folgar seis, para se dedicar à contemplação e aos seus escritos. Após ouvir do povo da cidade perguntas insistentes sobre o que ele fazia sozinho no mato, resolveu escrever um ensaio, que acabou virando o clássico "Walden, ou A Vida nos Bosques".

"Fui para os bosques porque  pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido."
Mas um dos aspectos mais peculiares, corajosos e louváveis de Thoreau era sua recusa em aceitar o controle do governo, principalmente de um governo escravocrata e colonizador (na época em guerra com o México, a que ele se opunha ferozmente) e sua pregação de uma espécie de anarquismo, que se acirrou durante a sua estada no casebre em Walden, de 1845 a 1847. Em 1846, por sua recusa em pagar um imposto, Thoreau foi preso (passou apenas uma noite na cadeia), o que o fez escrever seu famoso ensaio "A Desobediência Civil". Thomas Jefferson havia dito que "o melhor governo é o que menos governa". Um furioso Thoreau escreveu: "o melhor governo é o que não governa de forma alguma". Outra faceta nobre de Thoreau era sua defesa veemente do abolicionismo, chegando a ajudar escravos fugitivos a chegar ao Canadá. Ele escreveu: "Quando um sexto da população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais urgente pelo fato de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o país invasor é o nosso".
Thoreau morreu de tuberculose, aos 45 de idade. Em seu enterro, Emerson disse: "O país não sabe o grande filho que perdeu. Sua alma foi criada para a mais nobre das sociedades; ele, em sua curta vida, exauriu todas as possibilidades deste mundo. Onde houver sabedoria, onde houver virtude, onde houver beleza, ele encontrará o seu lar".

O verdadeiro Christopher McCandless, em sua última foto

Eu considero Throreau profundamente inspirador, principalmente numa época em que o governo interfere em nossa vida de todas as formas, dizendo como devemos vivê-la; em que nossas liberdades individuais são constantemente ameaçadas e somos literalmente roubados por impostos acachapantes. Quem sabe não encontremos uma nova forma de anarquismo, ou qualquer outro movimento que nos tire da sonolência?
Obviamente não se trata de fugir para o mato e viver como um eremita (embora seja uma alternativa), pois, como anotou McCandless nas últimas páginas de seu diário: "A felicidade só é verdadeira quando compartilhada".


Para baixar o ensaio "A Desobediência Civil", clique aqui: http://www.megaupload.com/?d=BZPOF7A2
Para baixar o livro "Walden, ou A Vida nos Bosques", clique aqui: http://www.megaupload.com/?d=4L8NCHH8
Para descompactar os arquivos, uso o 7-Zip, que é ótimo e gratuito: http://download.cnet.com/7-Zip/3000-2250_4-10045185.html?tag=mncol;3

15 comentários:

  1. Eu achei o filme plasticamento belo, mas fiquei irritado com esse fulano, achei tipo um rebelde sem causa, bobão e burro! Se fudeu no mato gelado.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. foda-se irmão, o cr viveu a vida dele como ele quis, diferente de tu q nn tá fazendo porra nenhuma pra ser feliz

      Excluir
  2. É, burro ele foi mesmo, se meter no Alasca sem saber o que estava fazendo...

    ResponderExcluir
  3. muuuito bom seu texto. eu nao sabia da relação dele com emerson, quer dizer eu nao sabia nada sobre ele até ver o filme. muito linda a história do filme. e vc tem razão, a vida contemporanea está pedindo thoreau, necessitamos de suas idéias, afinal nao estamos mais pensando e sim, sendo pensados. marcelo amei a ideia do seu blog, escreva mais e nos brinde com essas informações tão valorosas. amei.

    ResponderExcluir
  4. Karine, fico muito feliz com o seu comentário, afinal sou seu fã há anos. E fico feliz em ver que a tecnologia une pessoas que, de outra forma, talvez jamais se conhecessem ou trocassem uma palavra. E, sim, vamos exercer mais a nossa individualidade e ter mais coragem, porque é isso que estes tempos urgem.

    ResponderExcluir
  5. Maravilha Marcelo, pessoas como você realmente tem todo o dever de fazer um blog. Mas já te aviso, como blogueira que sou faz alguns anos, blog é como um filho com problemas. Você o ama, todo mundo te cobra por ele, e você não consegue deixar de cuidar. Boa sorte!

    ResponderExcluir
  6. Brother, além de seu blog ser visualmente lindo, sei que sempre vai existir nos textos que vc postar aquela sua velha pitadinha de acidez inteligente.
    Já era hora de ter um espaço como este pra vc botar os bichos pra fora, comentar, alfinetar, refletir e fazer feito Throreau, saindo da zona de conforto e se expressando livremente.
    Quanto à Mc Candless, o bichinho só descobriu que "a felicidade só é verdadeira quando compartilhada" pq teve a coragem de se jogar numa aventura na qual ele nem imaginava qual seria o fim.
    Gosto dele - apesar de ter sido um pouco burro - pq foi livre!
    Vou sempre passar por aqui pra ver se aprendo alguma coisa com vc, já que vc e o Carlos são mil vezes mais inteligentes do que eu, essa irmã mais velha que vos fala.
    Beijos e parabéns pela ideia!

    ResponderExcluir
  7. Obrigado, Valentina. Eu gostei da analogia do filho problemático. Já imaginei que seria assim.
    Vera, obrigado pelas palavras. Resolvi postar sobre esse filme porque ele parece mexer com as pessoas - ninguém fica indiferente à história de McCandless. Pessoas corajosas deixam marcas e nos inspiram, como ele e Thoreau.

    ResponderExcluir
  8. Já deu pra perceber que vou aprender muito com esse blog. Tudo que li até agora, eu desconhecia. Ah, é quando eu crescer, quero escrever bem assim.

    ResponderExcluir
  9. Obrigado, Bia. A minha intenção, humildemente, é essa. Espero conseguir ao menos em parte...

    ResponderExcluir
  10. O filme é muito bom e eu gosto do McCandless. Ele não queria mais viver num mundo hipócrita, mas bem que podia ter fugido levando um celular... nunca se sabe...
    (Laila)

    ResponderExcluir
  11. Outro que se deu mal foi o alpinista mostrado no filme "127 Horas", mas ele perdeu "só" um braço...

    ResponderExcluir
  12. Hahaha, concordo com o Beto, tb gostei do filme, bela fotografia, mas o cara era mto vacilão, era um filhinho de papai que quis dar uma de louco e se deu mal, kkkkk.

    ResponderExcluir
  13. É, parece que todos concordam que, mesmo pra sair numa viagem sem rumo, é preciso ter um pouco de planejamento...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahahaha planejar algo sem planejamento é realmente de se pensar.
      O filme é o livro mexem com as pessoas porque ele teve a coragem de se jogar no mundo e ficar consigo mesmo.
      As pessoas, no geral, tem medo de ficarem sozinhas.

      Excluir