quarta-feira, 29 de junho de 2011

Woody Allen: Meio-Dia em Paris, na fila do Louvre

Uma vez perguntaram a Miles Davis sobre os "anos dourados" do jazz, ao que ele retrucou: "Que anos dourados? Nós éramos pobres, desesperados. Um se suicidava, o outro vendia o instrumento para comprar droga. É isso que você chama de anos dourados?" (ou algo parecido, estou citando de cabeça). E isso nos remete a essa nossa mania de nutrirmos uma nostalgia de épocas que não vivemos, pois, no conforto de nossas poltronas, é fácil enxergar apenas o lado romântico de vidas dolorosamente conturbadas, ainda mais quando essas épocas geraram tantas obras de arte excepcionais. Nada mais suculento para um crítico do que um artista genial e trágico: ele pode aliar sua genuína admiração ao gênio a esse prazer recôndito e inconfesso que nos toma ao lermos sobre essas figuras, o mesmo prazer (inconfesso, repito) que temos ao ler sobre a morte de alguma celebridade. Nós adoramos figuras trágicas, talvez porque ela nos façam lembrar que, no final das contas, somos todos humanos. Para citar figuras do esporte, Ayrton Senna virou um ídolo, com direito a monumento público. Emerson Fittipaldi, um ícone que merecia respeito maior, é solenemente ignorado. Seu pecado? Ele continua vivo e feliz. Nós idolatramos Van Gogh e ignoramos o gênio de Cézanne, que afinal foi quem deu início a todos os movimentos do começo do Século XX. Cézanne não se suicidou como Van Gogh, não morreu pobre e alcóolatra como Modigliani (cuja mulher, grávida, se suicidaria logo depois), nem era um marqueteiro de primeira grandeza como Picasso. Era discreto, levou uma vida pacata e morreu aos 67 anos (muito para aquela época). Não importa ele ter sido um gênio e um visionário. Sua vida não teve "graça", e ele foi relegado a um pé de página.



E foi com isso em mente que vi ontem "Meia-Noite em Paris", último filme de Woody Allen. A esta altura, todos já sabem do enredo: roteirista norte-americano vai a Paris com a família da noiva, fica entediado, começa a caminhar à noite e é magicamente transportado para os anos 20, a época que ficou imortalizada no livro "Paris é uma Festa", de Ernest Hemingway, e vem causando comichões em artistas e aspirantes a artistas desde então. No livro, Hemingway fala de sua convivência com os escritores F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Ezra Pound e Gertrude Stein, cuja "Autobiografia de Alice B. Toklas" também nos dá um inspirado panorama daquela geração que havia acabado de sobreviver à Primeira Guerra. Todo mundo estava em Paris, era lá que as coisas aconteciam. Os espanhóis Pablo Picasso e Salvador Dalí flanavam por suas ruas, ao lado dos mestres franceses que criavam movimentos como quem troca de roupa. O modernismo ganhava força, as vanguardas assombravam a todos. O mundo parecia um grande gabinete de curiosidades. Vendo em restrospecto, sentimos até uma certa pena desse entusiasmo - em 1939 o mundo escureceria de vez, e Paris seria invadida pelos alemães e humilhada até 1944. Artistas se suicidariam, seriam mortos ou fugiriam como ratos na calada da noite. Quem tem nostalgia dessa época certamente preferiria pular essa parte.

Ernest Hemingway
Antes de continuar, gostaria de dizer que sou fã de Woody Allen. Já vi quase todos os seus filmes, li seus livros, sei frases suas de cor, que vivo repetindo. Mas o humorista brilhante tem uma outra faceta, que domina a sua vida e vez ou outra emerge em seus filmes: um norte-americano neurastênico que desdenha a atual cultura de seu país (com certa razão) e um poser que venera a cultura europeia com indisfarçável inveja - aquele que emulou Ingmar Bergman em "Interiores" (1978) e agora põe todas as suas cartas na mesa - e essas cartas não têm a menor graça. No filme, Allen contrapõe seu alter ego, o roteirista Gil (Owen Wilson) ao pedante Paul (Michael Sheen), sem perceber que os dois se equivalem. Allen despreza e desdenha a sociedade americana, principalmente a de alta classe, sempre descrita como medíocre e arrogante, mas ela está sempre lá, em seus filmes, numa Nova York edulcorada, os pedantes bem-nascidos a falar de Dostoiévksi como quem fala da trufa branca do Piemonte: um artigo raro e obrigatório a se exibir durante o jantar. Gil ganha uma grana preta como roteirista, tem uma noiva bela e fútil e sonha com o romantismo da Paris dos anos 20. Em suma, Gil é um bobo, e Allen não poderia ter escolhido um ator mais abobalhado para o papel. E o fato de ele pronunciar Rodin como "road ann" só piora as coisas.
E então começa o maior problema do filme: o desfile de mitos que frequentavam os cafés e as festas da Cidade das Luzes. Se conseguir um ator para protagonizar um único personagem nessas cinebiografias já é difícil, o que dirá de vários deles. Corey Stoll tenta dar masculinidade ao seu Hemingway, mas não convence nem a própria mãe. Alison Pill nos faz acreditar que, se encontrássemos Zelda Fitzgerald tentando se suicidar, certamente daríamos um empurrãozinho. E os atores desconhecidos prestam um verdadeiro desserviço a grandes artistas: Buñuel é apenas um bobalhão, além de pouco inteligente; Toulouse-Lautrec é só um anão inexpressivo; Pablo Picasso tem o charme de uma maçaneta e Gertrude Stein é uma matrona ansiosa e tagarela (talvez fosse mesmo). A única exceção é o formidável Adrien Brody, que em cinco minutos salva o filme com sua interpretação do amalucado Salvador Dalí. Aliás, o encontro com os surrealistas, apesar do Buñuel narcoléptico, é a melhor piada do filme. E Brody lembra de algo que a maioria dos atores norte-americanos parece esquecer: que existe uma coisa chamada pronúncia, e outra chamada sotaque, e que essas coisas deveriam fazer parte da construção do personagem - a época dos soldados romanos falando inglês britânico já passou. E o desfile de celebridades dos anos 20 continua, e ficamos nos perguntando por que mesmo essas pessoas tão superficiais e pretensiosas fazem parte do nosso imaginário. A resposta é óbvia - porque foram artistas brilhantes - mas o filme sequer nos deixa entrever isso. E, no final, Allen chega à mesma conclusão que a do início do meu texto: nós sempre estamos idealizando gerações passadas e desdenhando a nossa própria. E romantizamos vidas que foram verdadeiramente dolorosas e trágicas. Hemingway se matou com uma tiro de espingarda em 1961. Sentir nostalgia já é uma bobagem. Sentir nostalgia de uma época que não vivemos é risível.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O amor segundo Maiakóvski

Nestes tempos negros, onde o amor é vítima de preconceitos mesquinhos de quem se diz guardião dos bons costumes de uma classe hipócrita, de quem se esconde por trás de supostos valores cristãos para exercer seu preconceito e sua intolerância, invoquemos o grande poeta russo Vladimir Maiakóvski, que, em outros tempos, se insurgiu contra a igualmente mesquinha mentalidade burguesa. Olhemos para cima, para o alto, lá onde ele está.

Vladimir Maiakóvski (1893-1930)

O Amor
(Vladimir Maiakóvski)

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A cornucópia de Wagner Willian

Faunus, 80x50cm, óleo s/tela, 2009
A primeira vez em que ouvi falar de Wagner Willian foi num singelo post no Facebook de Jorge Coli, professor de História da Arte e da Cultura da Unicamp e cronista da Folha de S.Paulo. E logo me ocorreu: como um artista tão brilhante não é conhecido do grande público? Mesmo numa época em que a pintura figurativa está em alta (as marés sobem e descem há quase um século) nós continuamos negligenciando os nossos talentos. E Wagner é um talento excepcional, uma força bruta que não conhece nem admite limitações de nenhuma espécie. Mas ele permanece no seu ringue, que é a pintura figurativa, e não há de arredar o pé por nenhum modismo ou frescura pós-qualquer-coisa.

Fragile, 80x50cm, óleo, acrílica e extrato de nogueira s/ tela, 2011

Ele nasceu em Natal, RN, em 1978, e vive em São Paulo há algum tempo. Entrou em escolinhas de pintura e na faculdade de belas artes, mas não terminou nem o primeiro semestre, segundo me informa, e mandou tudo às favas. Não que ele precisasse de orientação ou doutrinamento. Tudo que ele precisa é de um pouco de espaço para desferir um uppercut no nosso queixo e nos deixar a ver estrelas com sua cornucópia de imagens e referências.
Wagner é, antes de mais nada, um pintor excepcional, com grande domínio técnico. Seus quadros compõem séries, às quais ele dá títulos que nos posicionam quanto às referências que os inspiraram, mas que ao mesmo tempo nos confudem e estimulam. Num dos quadros da série Relativismo Cultural, vemos a imagem em preto e branco de Kirk Douglas no filme "O Invencível" (1949), seu corpo coberto de imagens que vão de Grande Otelo ao Amigo da Onça, passando por Nelson Rodrigues e a imagem de Nossa Senhora Aparecida. O título do quadro é "Docinho do Caju".

Docinho de Caju, 120x80cm, 2011

Suas imagens também emulam clássicos da pintura, onde Wagner demonstra virtuosismo. Mas ele não deseja venerar nem ser venerado; antes, quer nos instigar com um coquetel de imagens onde entram a arte oriental, seres mitológicos, o lixo televisivo, o sincretismo religioso, personagens de desenho animado, o "McMerda", o "Porra Chiqs", os amigos, as odes ao cigarro, a pornografia. Na estupenda série Sobre Instintos Primários, cujo quadro "Uma Tarde de Domingo" vê-se abaixo, mulheres nuas ou seminuas assumem cabeças de animais, enquanto na série Da Espiritualidade na Arte, cuja pintura "Fragile" (acima) faz parte, vê-se uma cadela com cabeça humana. O porco é uma imagem recorrente. Escreveu George Orwell, em "Revolução dos Bichos": "Já não se podia saber quem era homem, quem era porco". Wagner acrescenta: "Há uma nova humanidade, e ela é bestial". Um jab, dois passos para trás. Wagner parece nos mostrar todo um universo de possibilidades em meio à nossa estupidez. E ele nos fita os olhos, tal qual seu Kirk Douglas sincrético: "Vai encarar?"

Uma Tarde de Domingo, 50x80cm, óleo e acrílica s/ tela, 2011
E agora teremos a chance de ver essas obras ao vivo, a partir do dia 30 de junho, a partir das 19h, na Galeria Vertente, em Campinas. Wagner exibirá obras das séries Relativismo Cultural, Maracutaia, Nicotina e Nua e Crua. Para quem não puder, todas as suas séries podem ser vistas em seu ótimo site, cujo link está aqui ao lado. É muito bom ver um talento assim. Eu sou um apaixonado pela pintura. No meu "embate" com Wagner Willian, levei um gancho de direita e fui nocauteado.

domingo, 19 de junho de 2011

Montgomery Clift e "Freud, Além da Alma"

Esta semana finalmente vi "Freud, Além da Alma", o filme de John Huston de 1962, que havia anos estava na minha lista de filmes-clássicos-que-não-posso morrer-sem-assistir. Como toda obra-prima, é um trabalho belamente imperfeito e corajoso, com grandes qualidades que suplantam alguns erros. O filme de Huston é uma típica cinebiografia, reverente desde a cena de abertura, em que compara o gênio de Freud (com toda a razão) aos de Copérnico e Darwin. O filme se concentra em seus primeiros anos de pesquisa em Viena, antes de formular a Teoria da Psicanálise e mudar irredutivelmente a forma como o Homem vê a si próprio. Huston chamou para escrever o roteiro do filme ninguém menos do que o filósofo Jean-Paul Sartre, que tempos depois lhe entregou um calhamaço que o diretor norte-americano classificou de "infilmável". Sartre respondeu que diretores de cinema "não gostam de pensar" e pediu que seu nome fosse retirado do projeto. O roteiro, um tanto didático, acabou sendo escrito por Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt. Para o papel principal, Huston chamou Montgomery Clift, com quem havia trabalhado em "Os Desajustados" ("The Misfits"), um ano antes. Algumas pacientes de Freud são condensadas na figura de Cecily Koertner, interpretada com brilho por Suzannah York, e uma cena em particular mostra a força de Huston como cineasta: aquela em que Freud diz a Cecily que, naquela sessão em particular, ele não usaria a hipnose, que ela poderia relatar seus sonhos conscientemente. Quando ela começa a falar e se mostra desconfortável, ele afasta a sua cadeira para sair do campo de visão da paciente - nesse exato momento é criada a forma clássica de psicanálise.


Mas o grande problema do filme, a meu ver, é exatamente Montgomery Clift, que passa o filme como se estivesse no meio de uma crise de colite (da qual ele de fato sofria), os olhos esbugalhados e a boca entreaberta, como se estivesse vendo um monstro num filme de terror. Se a decadência física e psicológica de "Monty" haviam caído como uma luva em "Os Desajustados" e em sua única e pungente cena em "Julgamento em Nuremberg" (1961), aqui ela é apenas estranha e fora de lugar, ainda mais quando sabemos que Sigmund Freud era um homem calmo e de fronte serena. Monty era um grande ator, mas no fim da vida - ele morreria em 1966, aos 46 anos - o excesso de álcool, drogas e medicamentos, aliado à sua homossexualidade reprimida e ao acidente de carro que o havia desfigurado em 1956 o impedia de se concentrar e atuar como nos primeiros anos. Ele teve tantos problemas de saúde durante a fimagem de "Freud" que a Universal o processou pelos dias de atraso. No final, o filme foi um sucesso de bilheteria e ele conseguiu um acordo favorável.

Monty no início da carreira e depois do acidente

Monty Clift virou um astro já em seu segundo filme, "Rio Vermelho" ("Red River", 1948), onde atuou ao lado de John Wayne. Em 1951, protagoniza "Um Lugar ao Sol" ("A Place in the Sun"), com Elizabeth Taylor, sua grande amiga até o fim. Era o único ator de Hollywood que poderia rivalizar com Marlon Brando em matéria de talento e beleza, mas tinha uma personalidade frágil e era chegado numa birita e em medicamentos fortes. Em 1953, veio a consagração definitiva com o clássico "A Um Passo da Eternidade" ("From Here to Eternity"), ao lado de Burt Lancaster (há uma cena em que os dois estão bêbados - consta que Lancaster estava atuando, mas Monty tinha mesmo enchido a cara.
Em 1956, após sair de uma festa na casa de Liz Taylor, Monty enfia o seu Chevrolet numa árvore, ficando desfigurado (virou até música do The Clash, "The Right Profile": Monty's face is broken on a wheel / Is he alive? Can he still feel?). Liz correu para ajudá-lo e salvou sua vida, retirando dois dentes que ficaram entalados em sua garganta. Seu rosto foi reconstruído, mas, a partir daí, foi só ladeira abaixo. Durante as filmagens de "Os Desajustados", Marilyn Monroe, outra perturbada, disse: "Monty é a única pessoa que eu conheço que está pior do que eu".

Monty e Liz Taylor em "A Place in the Sun"
Com sua carreira em Hollywood em declínio, Monty foi morar em Nova York e tentar levar uma vida mais regrada. Em 1966, Liz ainda conseguiu que ele fosse escalado para atuar em "O Pecado de Todos Nós" ("Reflections of a Golden Eye"), mas Monty foi encontrado morto em seu apartamento por seu companheiro Lorenzo James no dia 23 de julho. Entrava para o panteão dos astros trágicos, ao lado de James Dean e Marilyn Monroe. Brando seria um quarto, mas insistiu em não morrer até 2004.

Uma última e pessoal nota sobre Freud: em 2001, eu fui convidado para participar de uma exposição coletiva na cidadezinha de Langenlois, na Áustria (na verdade uma maluquice num terreno baldio com um bando de artistas russos e um grupo punk local). Obviamente, na primeira oportunidade, fugi para Viena. Mas antes de visitar os museus e ver obras de Klimt, Schiele e cia, fiz questão de ir visitar o apartamento em que o Dr. Freud viveu e clinicou durante tantos anos, na Berggasse 19, no nono distrito de Viena. No local há alguns móveis que pertenceram a Freud, inclusive o famoso divã, mas o endereço foi transformado num pequeno museu para vender quinquilharias. Gostei de entrar naquele pequeno prédio, mas algo se perde nesses locais turísticos. De qualquer forma, comprei um isqueiro com uma frase de Freud e fui embora.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Mapa das Artes calling...

Hoje eu ia escrever sobre algo, para tentar manter a média de uma postagem a cada dois ou três dias, mas recebi o Mapa das Artes edição Julho/Agosto para traduzir para o inglês. No meio diz-se "verter", mas o dicionário não diferencia "traduzir" de "verter" - ambos significam passar de uma língua para outra.


O meu amigo Celso Fioravante lançou o Mapa das Artes em março de 2002, e eu passei a traduzi-lo no fim daquele ano, se não me falha a memória. Ele foi um pioneiro, preenchendo uma lacuna no circuito de artes plásticas de São Paulo - todas as grandes capitais do mundo têm guias similares à disposição dos turistas e de seus habitantes. O Mapa é lançado em português e inglês e é distribuído gratuitamente em todos os museus, instituições e galerias da cidade, e também possui a versão eletrônica, com atualizações diárias (link ao lado). Um jornalista do New York Times, numa matéria sobre São Paulo, classificou a versão impressa do Mapa das Artes de "excellent". Fiquei feliz, porque isso significa que eu também estou fazendo um bom trabalho. Bem, o dever me chama...

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Luiz Zerbini e o Chelpa Ferro

Eu nunca fui acometido pela Síndrome de Stendhal (aquela perturbação mental que se manifesta em algumas pessoas diante de grandes obras de arte e que virou até título de um filme de Dario Argento de 1996), mas os momentos de maior arrebatamento que senti foram diante de pinturas. A arte contemporânea há muito expandiu seus horizontes para além da pintura e da escultura, numa pletora de mídias: fotografia, vídeo, instalações, objetos, livros, performances, land art, obras site specific, instalações sonoras etc. O que a arte ganhou em meios e suportes, com o uso cada vez maior da tecnologia digital, perdeu, a meu ver, em profundidade e consistência. Mas antes que me chamem de reacionário, apresso-me em dizer que acredito na inteligência e no brilhantismo de alguns artistas, independentemente da técnica em que se expressam. Um desses artistas que extrapolam os limites da pintura sempre de forma original é Luiz Zerbini (São Paulo, 1959).

Luiz Zerbini, pintura de 1987

Ainda na década de 80, vi a reprodução do quadro acima e me encantei, sobretudo com o título: "A Tragédia é um Acúmulo de Mal-Entendidos". Anos depois, vi mais obras dele na mostra da Coleção Gilberto Chateaubriand, e pude constatar que ele pintava quadros luminosos, em composições desenfreadas e corajosas, tal qual uma criança espalhando brinquedos pela sala. Mas o arrebatamento de que eu falava só veio, para a minha surpresa, durante uma performance do grupo Chelpa Ferro, do qual Zerbini faz parte, em 2002. O Chelpa Ferro foi criado em 1995, no Rio de Janeiro, por Zerbini, o artista Jorge Teixeira (Barrão) e o editor de imagens Sérgio Mekler. A princípio, a ideia era criar uma banda, mas como nenhum deles sabia tocar nenhum instrumento, criaram performances com sons pré-gravados e percussões inusitadas. O projeto agradou e eles seguiram criando outras peformances, objetos e instalações.

Maverick 74 utilizado na performance "Autobang", 2002

Em 2002, eu fui à abertura da 25a Bienal de São Paulo, na expectativa de ver sua performance "Autobang". No local, havia um Maverick amarelo ano 74, um elevador de carros, baquetas, marretas, martelos, ossos, barras de ferro, caixas de som e microfones. Com horas de atraso, o grupo chega, acrescido de alguns membros. Alguns usam macacões, todos usam óculos de proteção. O público corre para o local, a ansiedade se assemelha à do início de um show de rock. Eu nunca vi nada parecido numa Bienal, evento agitado e esquizofrênico, onde reinam, paradoxalmente, o bocejo e o cansaço, tão distante do que deve ser a fruição de obras de arte, que pede silêncio e calma. Se não há isso, que haja o oposto - que venha o frio metal e a destruição, e o Chelpa Ferro parece disposto a tal. As luzes se apagam, o Maverick é iluminado. Cada membro pega o seu instrumento de destruição e começa a tocar levemente no carro, e os sons das batidas são processados e devolvidos, eletronicamente, criando ecos e distorções. As batidas são cada vez mais fortes, os sons se misturam e se expandem pelo prédio da Bienal. Uma comoção começa a se criar ali dentro. Mais do que música, eles oferecem uma catarse, um espetáculo de violência e beleza. O carro é levemente erguido pelo mecanismo, alguns membros sobem no capô e no teto, seus vidros são estilhaçados. O público urra, no escuro que circunda o "palco" iluminado, tal qual uma turba assistindo a um linchamento. O Maverick, um símbolo quase fálico de potência e velocidade, está semidestruído. A performance vai chegando ao fim. Inesperadamente, um membro da plateia sobe em cima do carro e começa a pular, logo seguido por outras pessoas, e mais outras. A catarse chega ao limite; os membros do Chelpa Ferro, obviamente preocupados com a segurança das pessoas, correm para retirá-las de cima do automóvel. O mítico prédio da Bienal, projetado por Niemeyer, com suas rampas sinuosas e sua aura de instituição federal, jamais fora chacoalhado daquela forma.

 
Sobre essa obra, Zerbini escreveu:

Esse é um trabalho sobre o som
do desejo, da violência, do instinto, do sexo
do risco, do tempo, do medo, da morte
dos detalhes do universo
é um trabalho de macho sobre o amor
meio burro, truculento, desastrado, infantil
profundo, preciso, caro e pretensioso
é um trabalho sobre o trabalho



Um registro em vídeo dessa performance pode ser visto no site do grupo (link ao lado), além de outros trabalhos. As pinturas mais recentes de Zerbini (magníficas) podem ser vistas no site da Galeria Fortes Vilaça.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Damian Loeb

Embora eu não pinte desde 2004, ano em que fiz minha última exposição individual, ainda me considero um pintor. Não sei se esse hiato se estenderá por mais alguns anos ou se será uma parada definitiva, mas não vejo, por enquanto, espaço em minha vida para a pintura. E, como pintor figurativo, aprecio pintores figurativos de todas as escolas e estilos. E um dos estilos que gosto é o hiper-realismo, que teve início no final dos anos 60, ganhou força nos anos 70 e perdura até hoje. Como o próprio nome diz, trata-se de uma pintura com grande precisão de detalhes, assemelhando-se a uma foto (a maioria dos artistas trabalha a partir de fotos que tiram), mas que consegue, a meu ver, transcendê-la. Há alguns anos, meu amigo Jurandy Valença, artista plástico, poeta e jornalista, que possui uma imensa biblioteca de livros de arte, me indicou um artista norte-americano que acho formidável: Damian Loeb.

Better Ways, óleo sobre tela, 91x91cm, 2010

Damian nasceu em New Haven, no estado de Connecticut, em 1970, e aprendeu a pintar sozinho. No começo dos anos 90, ele mudou-se para Nova York e foi descoberto por Jeffrey Deitch, da prestigiosa galeria Deitch Projects. Já expôs em diversos museus e galerias pelo mundo, e teve uma retrospectiva de sua obra exposta em 2006, no Aldrich Museum of Contemporary Art, em seu estado natal.
Tematicamente, já retratou cenas de filmes de ficção científica, naturezas-mortas, interiores de aviões, ruas desoladas e quartos habitados por personagens solitários, com predileção por cenas noturnas. Porém, em seus quadros, não há desespero nem depressão, mas apenas aquele momento fortuito em que a alma parece estar em suspenso enquanto estamos ocupados com alguma tarefa diária e mecânica. Embora de estilos diferentes, esse aspecto nos remete ao grande Edward Hopper. Anos atrás troquei e-mails com Loeb, que confirmou ser um grande fã de Hopper.

Ghosts I-IV, óleo sobre tela, 91x91cm, 2010
Gun, óleo sobre tela, 121x121cm, 2011

Em maio de 2011, Loeb apresentou sua nova série, chamada Verschränkung ou O Princípio da Incerteza, em sua atual galeria, a Acquavella, em Nova York. Apesar do título pomposo, retirado da Física Quântica, ela é composta de oito telas que mostram a mulher de Loeb, Zola, em diversas cenas íntimas. O que mais me chamou a atenção foi o grande salto qualitativo que ele deu nesses últimos anos na representação do corpo humano. Suas primeiras pinturas já demonstravam grande domínio técnico ao retratar objetos e paisagens, mas as pessoas nessas paisagens pareciam um tanto duras, e ele tinha um certo problema com a cor. Hoje o seu domínio é muito superior, como pode ser visto nestas telas a óleo que postei aqui.

Primary, óleo sobre tela, 91x91cm, 2009

Um aspecto curioso sobre Loeb é que ele é amigo pessoal do músico Moby. Antigamente ele mantinha um fotoblog (não sei se ainda mantém) com suas andanças por Nova York com ele. Para ver toda a série e trabalhos mais antigos, visite o site dele: www.damianloeb.com

domingo, 12 de junho de 2011

Um poeminha sacana de e.e.cummings

Hoje é 12 de Junho. Você está sozinho(a), achando que o Dia dos Namorados é uma grande sacanagem? Em sua homenagem, publico um poema de e.e.cummings (aquele poeta norte-americano maravilhoso que escrevia tudo em minúsculas, inclusive o próprio nome). Porque melhor do que ficar sem amor é roubar o amor dos outros.

Eric Fischl, "Dog Days" (díptico), óleo sobre tela, 1983

may i feel said he - e.e.cummings

may i feel said he
(i'll squeal said she
just once said he)
it's fun said she

(may i touch said he
how much said she
a lot said he)
why not said she

(let's go said he
not too far said she
what's too far said he
where you are said she)

may i stay said he
(which way said she
like this said he
if you kiss said she

may i move said he
is it love said she)
if you're willing said he
(but you're killing said she

but it's life said he
but your wife said she
now said he)
ow said she

(tiptop said he
don't stop said she
oh no said he)
go slow said she

(cccome?said he
ummm said she)
you're divine!said he
(you are Mine said she)

terça-feira, 7 de junho de 2011

Lady Gaga, Matthew Barney e o ciclo "Cremaster"

No começo de 2010, um amigo me mostrou o clipe "Bad Romance", de Lady Gaga. Até então eu nunca tinha prestado atenção nela, mas ele me assegurou: "Ela é a próxima Madonna". Achei a música legal, mas a primeira coisa que me ocorreu vendo o vídeo foi que, visualmente, ela havia sugado Matthew Barney até a última gota. Os figurinos, a ambientação, a maquiagem, as cores, as situações - tudo remetia ao ciclo de cinco filmes "Cremaster" do artista contemporâneo norte-americano, obviamente de forma diluída e empacotada para caber num clipe de cinco minutos.

Matthew Barney em "Cremaster 3"
Gaga, sendo novaiorquina e atenta a tudo que acontece à sua volta, certamente deve ter assistido aos filmes, que foram produzidos entre 1994 e 2002 e culminaram numa grande exibição no Guggenheim. Mais uma pitada de Madonna, outra de David LaChapelle - além da necessária obsessão pelo sucesso - fizeram Lady Gaga ser quem ela é hoje. Outro aspecto em comum com Barney é a sexualidade fria e explorada visualmente de forma estilizada e clínica: ele vê a sexualidade como um processo biológico e histórico ("cremaster" é um músculo que, no homem, suspende os testículos, e na mulher, recobre o ligamento redondo do útero - a partir daí Barney desenvolve inúmeras analogias e imagens que remetem aos processos de desenvolvimento e transformação do Homem); Gaga diz ter escolhido a fama à vida sexual e amorosa, ao mesmo tempo em que aparece, quase sempre seminua, numa simulação de sexualidade - a escritora Camille Paglia, que adora Madonna de forma lúbrica e não perde uma polêmica, acusou Gaga de ser "uma marionete magricela, ou um andróide plastificado" que "matou o sexo", e se pergunta: "como uma figura tão calculada e artificial, tão clínica e estranhamenrte asséptica, tão desprovida de erotismo genuíno tornou-se um ícone de sua geração?"

Aimee Mullins em "Cremaster 3"
Enquanto Gaga confessadamente almeja a fama a qualquer custo, Barney é um cara tímido e avesso aos holofotes, apesar de ter se casado com a cantora Björk, com quem tem uma filha, Isadora. De sua adolescência de esportista (ele praticava luta-livre e futebol americano) em Boise, Idaho, Barney herdou um corpo atlético e a disposição para stunts perigosos. Após trabalhar como modelo e se mudar para New Haven, Connecticut, Barney começou a estudar Arte em Yale, logo chamando atenção por sua originalidade. Seu trabalho de graduação foi um vídeo, "Field Dressing", que já continha as sementes que culminariam no ciclo "Cremaster". Em 1989, ele se muda para Nova York, chama atenção da poderosa art dealer Barbara Gladstone e inicia a produção dos filmes. O primeiro a ser lançado foi o "Cremaster 4" (eles foram feitos fora da ordem cronológica), produzido com "apenas" 200 mil dólares, e obviamente o menos sofisticado visualmente, embora já repleto de ideias originais e trazendo a famosa imagem do sátiro Loughton Candidate.

"Cremaster 4"

Eu tive a oportunidade de ver os cinco filmes em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, em 2004. Confesso que nunca passei tantas horas sentado numa sala de exibição, mas saí confiante de ter visto uma das obras mais arrebatadoras da modorrenta arte contemporânea, onde vicejam artistas que nos oferecem um jantarzinho requentado de conceitos tresloucados e uma autorreferência pouco interessante, com muito pouca visualidade. Barney certamente possui um discurso complexo (Björk, que participou do filme "Drawing Restraint 9", honestamente afirmou não ter entendido completamente o conceito do filme do marido), mas nos oferece um banquete audiovisual. Porém, quem espera uma narrativa clara e linear estranhará os longos planos-sequência onde ações são repetidas ad infinitum, o encadeamento de cenas aparentemente sem ligação entre si e os personagens mudos e estranhos.

Ursula Andrews em "Cremaster 5"
De 1994 a 2004, Barney seguiu produzindo os filmes do ciclo, que foram se tornando verdadeiras superproduções, conforme ele dispunha de orçamentos maiores, culminando no espetacular "Cremaster 3", um épico de mais de três horas de duração - os demais têm cerca de uma hora, totalizando cerca de sete horas. Barney consegue alinhavar em seus conceitos seres mitológicos, gigantes, ninfas, o estádio de futebol em Idaho onde ele jogava, loiras platinadas, balões da Goodyear, o escritor Norman Mailer interpretando Houdini (o assassino Gary Gilmore, cuja vida é contada no livro "A Canção do Carrasco", de Mailer, é interpretado por Barney em um dos filmes), Ursula Andrews interpretando uma solitária rainha, o artista Richard Serra como o arquiteto do Chrysler Building, corridas de cavalo, óperas e por aí vai, numa cornucópia de símbolos misteriosos e situações exuberantes. Seus detratores dizem que muito pouco faz sentido e que o próprio Barney se complica ao explicar seus filmes, mas não esqueçamos que o grande Buñuel muitas vezes dizia filmar coisa que havia sonhado, sem se importar com o significado. Matthew Barney não é um artista surrealista, ele não cria suas obras valendo-se do "automatismo psíquico" preconizado por André Breton no Manifesto de 1924; ao contrário, ele é um artista cerebral que gosta de ruminar seus conceitos e planejar longamente suas obras. Não obstante, o resultado final é muito similar: uma deambulação onírica que nos deixa extasiados.

"Cremaster 5"

Em 2004, Barney veio ao Brasil produzir "De Lama Lâmina", rodado em Salvador durante o carnaval, e segue filmando a séria "Drawing Restraint". Mas se você estiver se perguntando onde pode ver esses filmes, sorry, eles jamais serão lançados comercialmente, e por um aspecto técnico da arte contemporânea: trabalhos audiovisuais são tratados como a obra em si, e suas cópias são limitadas e caríssimas (no caso dele). É como uma gravura: existe uma matriz, e um número x de cópias é impresso. Quanto menos cópias, mais caras elas são. Mas você pode ter um aperitivo no site www.cremaster.net, ou comprar o livro "The Cremaster Cycle" (tem na Amazon por 140 dólares), ou esperar para ver em algum museu, nas raras exibições ao redor do mundo...


Veja o trailer:

domingo, 5 de junho de 2011

Alessandro Pagani

Quando você cria um blog, naturalmente estabelece algumas metas e regras. A primeira regra é o tema. Eu escolhi aquele que conheço melhor, embora, como todo o conhecimento humano, seja um imenso saco sem fundo, um oceano insondável: a arte (principalmente artes plásticas, cinema e literatura). E a primeira meta, creio eu, é a frequência com a qual você escreverá. Eu imaginei que dois posts por semana estava de bom tamanho. Alguém sugeriu posts diários, mas com o volume de tradução que faço, eu não teria tempo para escrever no blog todos os dias. Hoje eu havia me proposto um post maior, mas terei que me contentar com algo mais breve.

Sem Título (Van Dyck II), óleo sobre tela, 50x57cm, 2011

Por sugestão do meu amigo Bruno Sipavicius (também artista plástico), encontrei o site do pintor italiano Alessandro Pagani (Milão, 1973), que faz interpretações interessantes de clássicos do cinema.

"O Amigo Americano" (Win Wenders, 1977), óleo sobre tela, 70x50cm, 2010
À primeira vista, logo pensamos no pintor irlandês Francis Bacon. Mas enquanto Bacon criava todo um universo pictórico, ora confinando seus personagens deformados em espaços exíguos, ora deixando-os suspensos em áreas chapadas, em composições complexas e perturbadoras de cores primárias e secundárias, Pagani se limita a pintar os stills de determinadas cenas dos filmes. Não obstante, o resultado é forte e me agrada muito.

"Sob o Domínio do Medo" (Sam Peckinpah, 1971), óleo sobre tela, 70x68cm, 2010
Em outra ocasião, escreverei sobre Francis Bacon, um dos meus pintores prediletos de todos os tempos. Por ora, mais um quadro de Pagani (o link para o site dele está aqui ao lado).

"Milano Odia" (Umberto Lenzi, 1974), óleo sobre tela, 75x45cm, 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sobre Thoreau e "Na Natureza Selvagem"



Semana passada, traduzi um episódio do programa "Sem Reservas", do chef norte-americano Anthony Bourdain, para o canal Discovery. Tony, como é chamado pelos amigos, viaja pelo mundo experimentando a culinária local, e nesse programa viajaria aos cafundós do Maine, terra de seu cinegrafista Zach. Antes da viagem, ele pergunta a Zach: "Então, o que nós vamos ver no Maine?". Zach dá uma risadinha e diz: "Você já leu Thoreau?", ao que Tony responde: "Não me venha com esse papo de voltar à natureza... Mas tudo bem, se você me garantir que não haverá sodomia não-consensual". O comentário ilustra bem o que pessoas "civilizadas" (como o novaiorquino de origem francesa Tony) pensam a respeito do interior dos EUA, principalmente daqueles estados de baixíssimo índice populacional e intocados pelo desenvolvimento industrial: caipiras sodomitas e potencialmente homicidas, por pura má índole e/ou consaguinidade, conforme a imagem indelével do clássico "Amargo Pesadelo" ("Deliverance", filme de 1972 de John Boorman), onde Jon Voight, Burt Reynolds e mais dois amigos da cidade resolvem descer um rio de canoa e se dão muito mal, não sem antes participarem do famosíssimo "duelo de banjos". Outra coisa que vem à mente de todos sobre os cafundós dos EUA e a tal vida selvagem é bem mais nobre e inspiradora: o pensamento de Henry David Thoreau (1817-1862).

Na verdade, voltei a pensar em Thoreau desde que vi o filme "Na Natureza Selvagem", de Sean Penn. Filme belíssimo, com o excelente Emile Hirsch no papel de Christopher Johnson McCandless (quem o viu em "Alpha Dog" e "Milk" sabe como ele é versátil, ao contrário de certos atores famosíssimos) e boa trilha de Eddie Vedder (se bem que alguém sugeriu que Woody Guthrie teria sido melhor). Trata-se de uma história real, contada no livro "Into the Wild", do jornalista e escritor Jon Krakauer. McCandless, após se formar, em 1990, colocou uma mochila nas costas e partiu numa viagem de dois anos, passando por alguns estados até chegar ao Alasca (péssima ideia) onde acabaria morrendo de inanição. O que o movia, mais do que aventura, era um ideal de volta à natureza e autoconhecimento, fortemente alimentado pela leitura de Jack London, Tolstói, Jack Kerouac e, mais marcadamente, Ralph Waldo Emerson e Thoreau.



Mas quem foi Thoreau? Antes de mais nada, um homem acima dos seus pares e à frente de seu tempo. Nasceu e viveu na cidadezinha de Concord, Massachusetts, formou-se professor, montou uma escola com o irmão mas acabou mesmo trabalhando na fábrica de lápis do pai. Sempre foi independente, visionário e rebelde. Por sorte, era vizinho do escritor, filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson, criador do transcedentalismo, que já pregava mais espiritualismo e menos materialismo, mais intuição e menos racionalismo. Emerson era mais velho e virou tutor de Thoreau, a ponto de chamá-lo para viver em sua casa. Após um tempo, Emerson lhe deu permissão para construir um casebre num terreno seu, às margens do Lago Walden. A princípio, ele foi para o meio do mato com dois propósitos: um, escrever um livro sobre uma memorável viagem de barco que havia feito anos antes com o seu finado irmão John; outro era conduzir um curioso "experimento econômico" em que ele pretendia inverter o hábito ianque de trabalhar seis dias e folgar um: ele queria trabalhar um dia, para seu sustento, e folgar seis, para se dedicar à contemplação e aos seus escritos. Após ouvir do povo da cidade perguntas insistentes sobre o que ele fazia sozinho no mato, resolveu escrever um ensaio, que acabou virando o clássico "Walden, ou A Vida nos Bosques".

"Fui para os bosques porque  pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido."
Mas um dos aspectos mais peculiares, corajosos e louváveis de Thoreau era sua recusa em aceitar o controle do governo, principalmente de um governo escravocrata e colonizador (na época em guerra com o México, a que ele se opunha ferozmente) e sua pregação de uma espécie de anarquismo, que se acirrou durante a sua estada no casebre em Walden, de 1845 a 1847. Em 1846, por sua recusa em pagar um imposto, Thoreau foi preso (passou apenas uma noite na cadeia), o que o fez escrever seu famoso ensaio "A Desobediência Civil". Thomas Jefferson havia dito que "o melhor governo é o que menos governa". Um furioso Thoreau escreveu: "o melhor governo é o que não governa de forma alguma". Outra faceta nobre de Thoreau era sua defesa veemente do abolicionismo, chegando a ajudar escravos fugitivos a chegar ao Canadá. Ele escreveu: "Quando um sexto da população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais urgente pelo fato de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o país invasor é o nosso".
Thoreau morreu de tuberculose, aos 45 de idade. Em seu enterro, Emerson disse: "O país não sabe o grande filho que perdeu. Sua alma foi criada para a mais nobre das sociedades; ele, em sua curta vida, exauriu todas as possibilidades deste mundo. Onde houver sabedoria, onde houver virtude, onde houver beleza, ele encontrará o seu lar".

O verdadeiro Christopher McCandless, em sua última foto

Eu considero Throreau profundamente inspirador, principalmente numa época em que o governo interfere em nossa vida de todas as formas, dizendo como devemos vivê-la; em que nossas liberdades individuais são constantemente ameaçadas e somos literalmente roubados por impostos acachapantes. Quem sabe não encontremos uma nova forma de anarquismo, ou qualquer outro movimento que nos tire da sonolência?
Obviamente não se trata de fugir para o mato e viver como um eremita (embora seja uma alternativa), pois, como anotou McCandless nas últimas páginas de seu diário: "A felicidade só é verdadeira quando compartilhada".


Para baixar o ensaio "A Desobediência Civil", clique aqui: http://www.megaupload.com/?d=BZPOF7A2
Para baixar o livro "Walden, ou A Vida nos Bosques", clique aqui: http://www.megaupload.com/?d=4L8NCHH8
Para descompactar os arquivos, uso o 7-Zip, que é ótimo e gratuito: http://download.cnet.com/7-Zip/3000-2250_4-10045185.html?tag=mncol;3