quarta-feira, 6 de julho de 2011

Call Mr. Lee

Vernissages são eventos enfadonhos. A fruição de obras de arte exige silêncio e calma, bem diferente do burburinho das aberturas de exposições. Se a exposição é sua, espera-se que você esteja presente; seus amigos sentem-se obrigados a lhe dizer algo, e aquele "achei interessante" sempre soa como um "achei uma porcaria mas não tenho coragem de dizer na sua cara", enquanto você espera, ansioso, que o galerista venha lhe dizer que vendeu um quadro e que, portanto, você poderá sair do estado de indigência em que se encontra. Se a exposição é de algum conhecido, você precisa se esforçar para dizer algo, embora via de regra tudo que sai da sua boca é um constrangido "achei muito interessante". Se o artista é famoso, você ao menos não precisa lhe dirigir a palavra, e se você achar tudo um lixo, ficará livre para dizê-lo entre seus amigos. É claro, vez ou outra você realmente gosta do que vê, mas mesmo assim é melhor ver as obras depois da abertura, na tranquilidade de um dia de semana. O falatório das vernissages, as rodas em torno do artista, as figurinhas de sempre com suas taças de prosecco na mão, tudo isso me dá ânsia de correr na direção oposta. Não que eu não goste de conversar com artistas. Há muitos artistas talentosos e experientes com quem eu adoraria conversar, mas eu preferiria encontrá-los em outro lugar, por acaso, e trocar impressões sobre o tempo, talvez. E foi exatamente isso que aconteceu numa noite de 1998, em São Paulo.

Wesley Duke Lee (1931 - 2010)

Eu havia conhecido, através de um amigo, a decoradora Vera Leslie (que não vejo há anos) e, durante um tempo, fizemos visitas um ao outro. Certo dia, Leslie me convidou para ir ao aniversário de seu marido, Douglas, que seria em sua belíssima - e coloridíssima - casa no bairro do Ibirapuera. Chegando lá, encontrei a casa cheia, muitos amigos do casal, além de seus filhos e os amigos destes. Eu não conhecia ninguém além de Vera e Douglas, e me preparei para passar uma noite agradável mas solitária em meio a várias pessoas. Após um tempo na sala, tentando participar sem muito esforço de uma roda de conversa, me levantei e fui ao terraço da casa, tomar um ar. Lá, sentado sozinho à uma mesa, com uma garrafa de vinho tinto à sua frente, havia um homem elegante, grisalho, um fino bigode encimando um leve sorriso. Era o artista Wesley Duke Lee.

"O Nome do Cadeado é: As Circunstâncias e seus Guardiões", 1966
Wesley foi um dos artistas que mais combativos e entusiasmados da arte brasileira: pintor, desenhista, gravador, precursor dos happenings nestas bandas - nos anos 60 - e sempre um instigador. Nos anos 50, estudou no Parson's School of Design e no American Institute of Graphic Arts, em Nova York, quando entrou em contato com a Pop Art que influenciaria decisivamente o seu trabalho. De volta ao Brasil, em 1963, quando lhe impediram de expor desenhos eróticos (a série "Ligas") em museus e galerias, ele os apresentou no João Sebastião Bar, no centro da cidade, sob o título de "Grande Espetáculo das Artes". Anos depois, como uma reação ao mercado das artes (hoje as "ovelhas" se calaram para sempre) fundou o Grupo Rex, ao lado de outro então enfant terrible, Nelson Leirner, e outros artistas, e chegou a ser cobaia para um experimento com LSD em um hospital, onde se trancou numa sala para desenhar sob o efeito da droga. Em suma, um verdadeiro ícone da arte brasileira. Eu me apresentei, me sentei, e ele gentilmente me serviu uma taça de vinho.

"Birgitta Pensando", 1966

Contou-me muitas histórias; disse que com o dinheiro que ganhou com a Bienal de Tóquio de 1965 rodou o mundo até não restar um centavo, e que tinha pena de nós, artistas atuais, vítimas de uma economia acachapante e de um mercado de arte perverso. Falou-me de artistas, de mulheres, da vida. Eu, na minha arrogância, comecei com minha ladainha contra Duchamp. Eu disse a ele que tinha uma teoria sobre o francês. Wesley me serviu mais vinho:
- Eu terei o maior prazer em ouvir.
Eu lhe disse que Marcel Duchamp era um bom pintor cubista, mas que não poderia chegar ao nível de seus contemporâneos como Picasso e Braque; por outro lado, era muito mais inteligente, era um intelectual, e decidiu usar sua inteligência para destruir a arte e encontrar um meio onde se sobressaísse. Wesley acendeu um cigarro:
- Olha, eu conheci Duchamp pessoalmente. Apesar da irreverência, ele era um artista extremamente sério. Ele acreditava no que fazia.
Lembrei-me de quanto o dadaísta havia influenciado Wesley, e o quanto da mesma irreverência havia em sua obra. Ele não pareceu ofendido, muito pelo conrário: pareceu divertir-se com minha insolência. Mudamos de assunto, e ele ainda comentou que estava fazendo experimentos com arte digital. Muitas taças de vinho e muitos cigarros depois, nos despedimos. No carro, no caminho para casa, pensei na minha sorte de ter conhecido Wesley Duke Lee por acaso. O transgressor irreverente era, acima de tudo, um gentleman.
No ano seguinte, Wesley apresentaria a série "O Filiarcado", que, salvo raras exceções, foi solenemente ignorada pela crítica. Pouco antes de sua morte, em 2010, como de costume, o mercado da arte se alvoroçou. Todos, imagino, torcendo secretamente para que o velho batesse logo as botas, elevando o preço de suas obras disponíveis no mercado. Não há melhor notícia para galeristas e leiloeiros do que a morte de um artista. Mr. Lee must be laughing up there.

A propósito, o título do post é também o titulo de uma música do ótimo Television. Assista:
Call Mr. Lee - Television

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