sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma palavra sobre o Surrealismo

André Breton, em foto de Man Ray (c.1930)

Outro dia me ocorreu que vez ou outra me refiro ao surrealismo no blog, ao falar do trabalho de algum pintor contemporâneo. Não que algum seja surrealista de fato ou por escolha, mas o conceito do "automatismo psíquico" defendido por André Breton é forte demais para ser deixado de lado. Alguns movimentos artísticos do final do século XIX e começo do século XX se limitaram às artes plásticas, como o impressionismo, o pós-impressionismo e o cubismo; outros, como o dadaísmo, o minimalismo e o futurismo, abarcaram outras áreas, como a literatura, o teatro e a arquitetura. É desta natureza o surrealismo, que começou, na verdade, como um movimento filosóficoliterário. O que me ocorreu foi que, a despeito da importância e do alcance de todos os ismos vanguardistas do período, hoje eles seguem como verbetes num dicionário, sem eco no mundo atual ou na arte contemporânea - a não ser no fato de que ela é tataraneta do dadaísmo via a arte conceitual de Marcel Duchamp. Ou seja, ninguém mais pinta como os impressionistas ou faz poesia como os concretistas ou enxerga o mundo de forma cubista - a não ser que você esteja extremamente bêbado. Mas o surrealismo, de forma única, contribuiu com pelo menos um adjetivo para o nosso léxico e um conceito que se cristalizou - o derivado do seu próprio nome. Assim como a Psicanálise renovou o nosso vocabulário e, com isso, mudou a nossa forma de enxergar o Homem, hoje nos parece natural dizer, diante de algo absurdo ou que pertence ao campo do sonho e da imaginação: "Isso é surreal".


A palavra foi criada em 1917 pelo poeta francês Guillaume Apollinaire, que, no prefácio de sua peça "As Mamas de Tirésias", cunhou o termo "sur-réaliste" para descrever uma forma de expressão que ultrapassasse o realismo literário. O escritor e poeta André Breton (1896-1966), apesar de desancar Apollinaire em seu "Manifesto do Surrealismo" de 1924, adotou o termo para definir uma nova corrente de pensamento que ele viria a desenvolver e defender com unhas e dentes. Breton, que estudara Medicina e fora insuflado pelas teorias psicanalíticas de Freud - principalmente a livre associação e a interpretação dos sonhos - estava ressentido com o excessivo racionalismo europeu e com o naturalismo embotador da literatura da época (no mesmo Manifesto, ele transcreve uma passagem de "Crime e Castigo" de Dostoiévski, em que o autor russo descreve um aposento nos mínimos detalhes, para logo concluir: "perdeu o seu tempo - pois eu não entro no seu quarto"). A princípio aliado à anti-arte anarquista do dadaísmo de Zurique (de onde cooptaria Tristan Tzara, Max Ernst e Hans Arp), surgido junto com a Primeira Guerra Mundial, Breton logo encontrou sua turma em Paris, principalmente os escritores Louis Aragon e Phillipe Soupault, com quem publica o jornal Littérature e começa os primeiros experimentos com a "escrita automática" - que geraria o livro "Os Campos Magnéticos", de Breton e Soupault, em 1920. O que ele desejava, ferozmente, era promover uma libertação dos valores burgueses e uma valorização da imaginação e dos instintos: "Não é o medo da loucura que vai nos obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação. (...) Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade".

O grupo surrealista em 1930. Da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Man Ray, Salvador Dalí, Hans Arp, Paul Éluard, Yves Tanguy, Max Ernst, André Breton, René Crevel

Escreveu Breton no Manifesto de 1924: "Ainda vivemos sob o império da lógica (...) Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud."

Max Ernst, Chimère, óleo sobre tela, 114x146cm, 1928

Ao lançar oficialmente a base de seu movimento, com direito ao famoso verbete ("SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral"), Breton já havia atraído um grupo numeroso de escritores e artistas plásticos que se identificavam com os ideais surrealistas. Entre eles, Paul Éluard, René Crevel, André Masson, Salvador Dalí, Joan Miró, Man Ray, Jean Arp, Yves Tanguy, Jacques Prévert, Giorgio de Chirico, Antonin Artaud, Max Morise e Gala Éluard (que depois se tornaria Gala Dalí). O dadaísta Duchamp esteve envolvido com o grupo, mas jamais aderiu de fato ao surrealismo.

Max Ernst, O Encontro dos Amigos, 1922. Da esquerda para a direita, sentados: René Crevel, Max Ernst, Dostoiévski, Théodore Fraenkel, Jean Paulhan, Benjamin Péret, Johannes Baargeld, Robert Desnos. Da esquerda para a direita, de pé: Phillipe Soupault, Jean Arp, Max Morise, Rafael Sanzio, Paul Éluard, Louis Aragon, André Breton, Giorgio de Chirico, Gala

O problema é que, para Breton, o surrealismo era mais do que um movimento artístico, era uma revolução que mudaria a sociedade e libertaria as pessoas de um racionalismo falso e burguês, para que pudessem, enfim, viver a verdadeira essência do espírito humano. Em 1924, ele e seu grupo fundam o Bureau de Pesquisas Surrealistas e lançam o jornal La Révolution Surréaliste, que duraria até 1929. Ainda em seu Manifesto: "A atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica (...) presta-se especialmente à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer até que as imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito. Aos poucos o espírito se convence da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo a lhes prestar sugestão, logo ele percebe que lisonjeiam a sua razão, e aumentam, outrossim, o seu conhecimento. Ele toma conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus desejos, onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que apenas lhe dão tempo para soprar os dedos queimados. É mais bela das noites, a noite dos fulgores; perto dela, o dia é a noite".

Salvador Dalí, em foto de Jean Dieuzaide (Espanha, 1953)

Em minha modestíssima opinião, apesar dos experimentos interessantes com a escrita automática, o surrealismo só gerou pinturas ruins. No afã de dar vazão às imagens do inconsciente, os pintores surrealistas acabaram por criar um repertório previsível e maneirista, que chegou ao ápice com Salvador Dalí, um artista desigual e um grande promovedor de si próprio (Breton, mais tarde, a seu respeito, criaria o anagrama "Avida Dollars" a partir de seu nome). Vale como personalidade histórica e como louco-mor, mas suas pinturas são medíocres. Pessoalmente, só gosto de alguns trabalhos de Max Ernst e René Magritte. Para mim, as ideias e os processos surrealistas só foram utilizadas de forma completa e brilhante por um gênio, curiosamente um cineasta: Luis Buñuel. Sobre ele escreverei mais tarde. Apesar do fracasso do ideal surrealista de André Breton, e da debandada de seus defensores e de acusações mútuas nos anos seguintes, é tocante conhecer a história desse grupo de artistas, guiados por um visionário que, apesar de considerado autoritário por alguns, ousou, pelo menos durante um tempo, libertar seu espírito e seu intelecto de toda e qualquer amarra imposta pela nossa civilização hipócrita. Seu legado continua sempre que, espantados ou atraídos por algo que nos foge ao conhecimento, dizemos: "Isso é surreal".

Clique aqui para baixar o Manifesto do Surrealismo de André Breton: Manifesto do Surrealismo
Clique abaixo para assistir a "Um Cão Andaluz", dirigido por Luis Buñuel, com roteiro de Buñuel e Salvador Dalí:


2 comentários:

  1. Você trouxe à tona fatos muito interessantes desse movimento que, para mim, mudou intensamente a relação que temos com a arte hoje. O desbravamento intelectual (iniciado no Dadaísmo) e a ruptura com valores até então estabelecidos foram muito importantes para hoje, existirem manifestações tão vastas como por exemplo, as performances e os happenings iniciadas na década de 6o. Muito mais do que um movimento artístico, o surrealismo traz posições políticas e críticas muito sérias, que podem ser trazidas à tona até os dias de hoje. Subverter a realidade e usá-la a favor de novas perspectivas e realidades é bastante interessante. Obrigada pelas informações, continue escrevendo! Abraços, Lari. Aliás, tudo que se propõe a tirar o homem de seu estado de conforto é sempre válido Rs.

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    1. Obrigado, Lari. Concordo que tirar o Homem de seu estado de conforto é sempre válido, e por isso mesmo vez ou outra volta aos filmes de Buñuel! Um grande abraço

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